terça-feira, 16 de novembro de 2010

Casa de vidro

Subi as escadas, cansada. As malas estavam pesadas e a caminhada até o portão aconteceu debaixo de um sol esquisito, um calor abafado fora de época, que trazia a chuva do fim da tarde. Eu não tinha mais vontade de subir, mas também não ficaria parada diante da casa antiga, caindo aos pedaços. Entrei. Na sala pequena estavam o velho sofá, a TV e o móvel que a avó ganhara no aniversário. A estreita porta que levava à cozinha tinha uma cortina de pano que mais parecia querer esconder os que estavam lá dentro do que enfeitar o pequeno cômodo. Fui até a pia e lavei as mãos com o sabão caseiro, tomei um copo e enchi de água fresca. As crianças corriam para me ver, agarravam minhas pernas e pediam um doce, um presente, uma nova história. Eu não tinha nada para elas. Eu não tinha nada para ninguém.

Sentei de frente para a mãe, como se esperando que ela resolvesse falar algo. Nenhum sinal de vida dentro daquele corpo sereno e calorento. Tinha os olhos um pouco vermelhos e lacrimosos, sabia que eu estava ali depois de tantos anos. Fiquei olhando aquela pessoa tão fraca, tão cheia de cansaço e dor que antes era a força que sustentava toda aquela família. Estava um pedaço de gente, quase um resto de mulher que já vivera tudo que podia e não podia. A pele preta enrugada contava mais histórias que qualquer livro Best-seller dos últimos tempos – histórias de amor, de dor, de brigas, de trabalho, de cidades construídas e destruídas, de lares feitos e desfeitos, de morte, etc. Ali, naqueles caminhos de rugas havia tantas palavras, que já não cabiam mais em sua boca e agora escorriam com o suor febril.

Fiquei algum tempo ali sentada, para descansar da viagem e para aproveitar a presença silenciosa daquela mulher. Entristecia-me vê-la tão calada. Alegrava-me vê-la viva. Mesmo depois de tudo, ainda restava-lhe ânimo para sair da cama às 7 da manhã, sentar-se na sala, caminhar até a varanda, às 3 da tarde e voltar à cama às 6 horas da noite, hora dos anjos, como costumava dizer. Ainda olhava para o pequeno oratório que tinha na cabeceira da cama, com imagens de santos e fotos dos parentes queridos. Olhando as suas fotos, eu sempre me lembrava das fantasias de quando era criança, das festas onde todos cantavam e dançavam, dos doces e das brincadeiras de quintal – quando havia quintal. Tudo virado fumaça com o brincar do tempo em nossos cabelos...

Os outros foram chegando ao longo do dia, e eu ainda me mantive sentada no mesmo lugar. Via o vento soprar um vapor amargo nas árvores do lado de fora, percebia a agitação da rua com o dia de festa. Era quase Natal, de novo, e sentia a leve irritação me invadir ao pensar em presentes, comida e tudo mais. Muito vazio. O homem já não existia, desde que a morte resolvera tomá-lo de nós. Presentes, nunca foram muitos, pela falta de recurso e pelas compras feitas ao longo do ano. Comida, sim, havia bastante, por todos os lados. Havia mais gente do que cabia na casa, e todos pareciam muito felizes com o reencontro. Enfim, a senhora foi colocada, com cuidado ao centro da mesa, como uma rainha num trono de um reino decadente e estúpido que se desfazia a cada passar de estação. Finda a primavera, morriam nossas flores; passado o inverno, desmanchavam-se nossos cobertores; outono levava consigo nossos ventos de esperança; fim de verão e as chuvas cruéis enlameavam as últimas chances de que aquele jardim voltasse a florescer.

Era tarde da noite e todos se recolhiam. Fiquei mais um tempo sentada de frente para a mesa, lembrando do avô, do bisavô, do tio e do pai. Ficaram todas as mulheres, com suas lembranças de traições e saudades, seus filhos mortos e suas mãos machucadas. Ficaram os corações despedaçados ao longo da vida ingrata, que lhes tirou o amor, a beleza, em troca de quase nada. A tia, a mãe, a avó, a bisavó. Estavam agora se despindo, em silêncio, voltando sozinhas para as camas, esperando o relógio soar novamente a hora de abrir o olhos para o nada. No quarto escuro e empoeirado, fechei os olhos depois de ver no teto o desenho daquela solidão. No dia seguinte partiria novamente, com as mesmas malas pesadas, onde eu não trouxe nada, onde eu não levo nada. Partiria com a tristeza nos olhos, depois do abraço enfraquecido, descendo as escadas sob o olhar abandonado dos que ficam por ali. “Até para o ano, se deus quiser” – ainda posso ouvir de longe. Deus queira que quando eu volte, a casa ainda esteja no mesmo lugar.