sábado, 31 de dezembro de 2011

O céu do ano velho




Ainda na cama via pelo pedaço aberto da janela o branco do céu do dia 31. Nem azul nem cinza, nem sol nem chuva. Como se preparado para o ano novo, o céu também se cobriu de branco, como a multidão que pisoteia as areias de Copacabana.  Nem frio nem quente, um dia sem graça nenhuma, triste até para ser considerado o último. Um número, uma andadinha no ponteiro do relógio e todos fechando os olhos esperando que tudo seja diferente a partir de então.  Acreditamos. É sempre bom acreditar.

Acabar o ano sempre me dá uma sensação de urgência, o sentimento de que deveria ter escrito as metas para o ano que vem, deveria escrever o que foi bom e o que não valeu a pena, deveria preparar um banho de rosas e outras folhas para me energizar, deveria ter comprado roupa nova, deveria , deveria... mas não fiz nada. Acordei como qualquer outro dia, ajudei no preparo do almoço, tomei banho como sempre. De longe, nada mudou. Mas falam tanto, jogam tanto na nossa cara que essa é a chance de mudar, de rever, de refazer, que quando não o fazemos vem a culpa e pronto! Já começo o ano devendo!

Agora vejo este céu imenso sobre as montanhas mineiras, sentindo nas pernas os respingos da chuva forte que cai. No instante em que escrevo não escuto nada além da água que cai pesada, densa, lavando o tempo que se acaba de 2011. Fecho os olhos da alma e coloco na chuva todas as minhas dores sentidas, as palavras engolidas a seco, as mágoas que ainda retumbam no ouvido e no peito. Entrego sem apego as tristezas pequenas que tive e todas as despedidas dolorosas que me obriguei a viver. Aproveito e peço que se lave do mundo a onda de maldade e injustiça que cada vez mais me deixa descrente de que a humanidade seja melhor. Que se lave de nossas vistas a pobreza e a desigualdade. Que se lave de nossos corpos a violência e a obsessão que nos torna mais doentes. Que escorram na água da chuva todas as más intenções que povoam o cotidiano de quem só quer viver bem, e nada mais.

A chuva para agora. Acabo o último parágrafo, talvez o último do ano que deixo escapar.  O céu se acalma, o barulho cessa, o verde reaparece ainda mais verde por trás da cortina de gotas.  Permaneço em silêncio e penso no domingo, o primeiro, amanhã. Não vou escrever minhas metas nem tomar banho de ervas. Quem sabe me vista de branco, porque eu gosto de me vestir assim.  Quem sabe até faça uma lista de desejos e peça aos deuses que os realizem no ano que vem. Dois mil e doze já aponta na esquina, com olhos arregalados, carregando nas costas uma mala enorme cheia de não-sei-o-quê. Que venha trazendo o que é bom. E que traga para o céu o azul brilhante, o azul vivo que nos mostre as cores do que é novo.  Que seja um céu novo, sem chuva, sem sombra. Um céu de possibilidades.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Homem Livre

Outro publicado nO Paroquiano, em setembro de 2008.


No dia 08/08/08 um homem saiu de sua cidade natal sobre uma bicicleta em busca de um sonho. Na mesma manhã, Clarinha e André estavam fechados na sala branca, sobre um enorme colchão branco amarelado, isolados das outras crianças. A catapora distancia as pessoas. E durante a semana, enquanto pedalava por uma estrada qualquer, de um país sem nome, onde pessoas sem identidade olhavam seus rostos sem traço algum em espelhos que se quebravam com vento, o homem pensou que era livre.

Na semana anterior Clarinha pulou do meu colo e sentou-se na janela. Uma janela grande, cercada por uma tela cinza e fria, que impedia os pássaros de chegarem mais perto da menina sem mãe. Clarinha viu a árvore, o pedaço de céu azul entre os edifícios, o verde do jardim à frente da casa de outra menina. Ela pediu pra ficar ali mais um pouco, e um pouquinho mais. Ela gosta muito de janelas. Só que nessa semana Clarinha não pulou no meu colo, nem viu a janela, nem sequer viu o céu azul estalado, lindo de um sol deslumbrante, que fazia derreter nossos sonhos em gotas de suor amargo. As pequenas manchas em seu rosto não apagaram a beleza de seu sorriso infantil, sua delicadeza de menina pedindo pra ser flor e ser regada e bem cuidada por toda uma estação. Mas o olhar era o mesmo que atravessava a tela, um olhar de quem pede para ser borboleta, formiga ou qualquer coisa que vivesse longe dali. Talvez Clarinha sonhe em ter uma bicicleta e sair por aí, e nem precisava ir tão longe. O outro lado da rua para ela já seria uma grande conquista. O mundo inteiro nem é preciso para as crianças que vivem como Clara. Para ela, bastavam uma mão e um lugar.

Durante 3 anos, o homem seguirá, sozinho, com sua casa nas costas, à procura daquilo que somente ele sabe onde encontrar. Talvez a liberdade que tanto procura e adora esteja dentro da própria alma, pulsando na própria veia, mas ele precisa atravessar oceanos, fronteiras e culturas para descobri-la ali. Talvez não encontre e continue a vagar por estradas sem fim, até que seu tesouro apareça como nas histórias em quadrinhos, brilhando debaixo de um arco-íris distante ou perdido num pote marrom. Ou, quem sabe, ele nem queira encontrar nada e esteja apenas se livrando do peso que o mundo nos joga quando temos uma carteira de identidade e uma conta no banco, quando esperamos aflitos pelo ônibus que não chega, ou corremos para levar os resultados de um exame que pode mudar nosso futuro.

Como deve ser bom poder fugir daquilo que escraviza e oprime. E ter tamanha coragem é privilégio dos heróis. Somente os heróis fogem. Sim, fogem. Também combatem e enfrentam dragões, mas são espertos o suficiente para sair na hora certa, quando se esgotam as forças ou quando o inimigo é poderoso demais. Ser herói é ser quase mais que humano, é fazer aquilo que poucos são capazes, é ter mais coragem, mais ousadia e um tanto de dom. Mas sabemos que nem todo herói é guerreiro, principalmente nas histórias de ficção. Ao guerreiro cabe a luta, ir à guerra, abrir o peito para que o herói não morra. O guerreiro não se entrega e mesmo à beira da morte precisa continuar. É o papel que lhe cabe.

Clarinha não pode fugir. Precisa esperar, sabe Deus por quanto tempo, ela vai esperar. A menina não pode pôr os pés na estrada e seguir em busca dos próprios sonhos antes que alguém lhe abra as portas daquele casarão enorme de corredores frios que ela chama de casa. Talvez pudesse acompanhar o homem, este que hoje não possui cor, nem cara, que se uniu ao vento e à chuva e carrega no peito somente uma placa escrita ‘ser humano’, este que está rompendo conceitos e atravessando guerras, este que se fez um herói. Mas ela não é uma heroína na nossa história e tampouco quer caminhar sozinha. Clara é uma das guerreiras e a ela cabe o papel de combater. A luta, dia após dia, contra a solidão das noites sem abraços, sem pai nem mãe nem irmão nem qualquer coisa que ela chame de família, a luta nos domingos sem visitas e sem doces, a luta por um colo que a leve à janela... Clarinha é guerreira. E enquanto nosso herói nos inspira buscando a Liberdade mundo afora, a menina de olhos tristes e coração sedento espera por ela. Só pode esperar. E a cada minuto que passa ela se distancia da pequena flor abandonada num orfanato qualquer. Se existe mesmo a Liberdade, que ela venha para Clarinha. Mas que venha logo, antes que o homem a encontre.


Em tempo: Danilo Perroti, o Homem Livre, chega de sua volta ao mundo sobre uma bicicleta no dia 11/11/11, às 11:11, em Belo Horizonte, na Praça da Liberdade. Quem puder, vá ver. http://www.homemlivre.com.br/home.php?idioma=1

Clara já não estava mais no orfanato na última vez que o visitei. Sua mãe voltou para buscá-la, junto de seu pequeno irmão. Voltaram para casa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A Flauta Mágica


Depois de uma longa ausência e, surpresa com os pedidos de novidades, retorno com mais um texto antigo publicado no jornal O Paroquiano (Fábio, obrigada pelo pedido e pelo carinho!). Maira, espero que goste.


A Flauta Mágica

O homem dos olhos cor de mel vive entre os bancos da praça do metrô e a marquise da lojinha de roupas ao lado da farmácia. Em seu terno velho e sujo, passa o dia sentado ao lado de alguns sapatos velhos e outras coisas. À noite fica na calçada, olhando desconfiado para as pessoas que passam. Há algum tempo que o conheço. Posso dizer que já faz parte da minha vida. Não tem nome, nunca ouvi sua voz, mas já me olhou nos olhos várias vezes. Acho que não me reconhece, talvez nem perceba que somos vizinhos. Dele eu não sei nada, nem tampouco ele sabe de mim. Mas convivemos bem assim, no silêncio dos olhares entre o preto e o mel.

Um dia ele apareceu de banho tomado, cabelo raspado. Era fim de ano e alguém deve tê-lo levado pra casa. Talvez algum familiar saudoso, um amigo ou até mesmo um voluntário de uma ONG. Deram- lhe roupas novas, um pouco mais informais. Ele abandonou o paletó velho e agora usava camisa de malha. Parecia mais jovem e mais bonito. Não mais feliz.

Um dia encontrou entre a grama suja e o cinza do chão uma flauta. Poderiam ter-lhe oferecido como doação (as pessoas e suas manias de dar coisas velhas para os pobres!), mas acredito que ele a tenha encontrado. Pegou-a com cuidado e limpou bastante. Guardou dentro do bolso da calça e passou o dia pensando no que fazer com aquilo. Pensava? Passaram-se semanas. Todos os dias, ao acordar, olhava a flauta. Antes de dormir, a limpava. Seus olhos cor de mel fitavam o instrumento com um misto de adoração e medo. De onde viria aquilo? E por que ele a encontrara? Um mês depois decidiu colocá-la na boca pela primeira vez. Como um menino que descobre a delícia de um sorvete, descobriu que poderia fazer barulho. E foi perdendo o medo. A cada dia, um minuto a mais de sons desarranjados e sem sentido.

Certa vez, depois que já estava à vontade fazendo seu som, algo diferente aconteceu. Enquanto tocava, passaram pela mente daquele homem algumas lembranças. Enquanto a flauta fazia barulho, momentos de quando era jovem surgiam como um sonho e desapareciam quando a flauta cessava. Via os rostos dos parentes perdidos, ouvia as vozes das mulheres que conheceu, lembrava das músicas de que mais gostou. Tudo, tudo o que havia se perdido no poço frio do esquecimento, tudo que a loucura e o desamparo levaram para longe do ser. Ao se dar conta do poder da flauta, começou a tocá-la mais vezes ao dia. Como uma droga, usava-a para sair do silêncio e da tristeza que lhe dominavam. Espantava os passantes com a melodia errante que invadia o sol de meio-dia da cidade turbulenta e quente. Os carros corriam à sua frente e o homem apenas tocava sua flauta. Fugia do mundo. Encontrava sua história.

Assim foi que o mendigo transformou-se no flautista da calçada. Passou a tocar quase o dia todo. Não queria parar nem para comer. O instrumento tornou-se seu amuleto, seu anjo da guarda, seu cachorro de estimação. Tinha o poder de levá-lo de volta à sua vida, perdida entre tantas outras. Ela lhe falava de sua identidade, do cidadão que havia se esquecido de ser. Ela lhe mostrava sua infância, o passado com os pais numa cidade pequena, o trabalho outrora perdido, a doença que aos poucos foi lhe transformando num marginal. Descobriu que não era um homem mau e que não sabia onde estava. Descobriu também que um dia foi amado e que ainda procuravam por ele. Pelos minutos em que tentava fazer música na pequena flauta, encontrava a si mesmo. Quem poderia imaginar que o pedaço de madeira teria poderes mágicos? E se então podia lembrar, por que tudo se apagava novamente quando o barulho acabava? A felicidade de lembrar de tudo durava pouco tempo, e logo que parava, os olhos cor de mel do homem do banco do metrô voltavam a se perder no infinito. Onde será que estava aquela mente depois do surto de memória? Para onde fugiram seus pensamentos? Onde a flauta buscava suas recordações?

A mim e ao outros passantes, nada mais que um mendigo tocando uma flautinha. Mas era um ser humano que agia em busca de si, do sentido de estar ali. Tocava, na esperança de um dia poder guardar todas as lembranças e poder sair do lugar onde a sociedade o lançara. Queria saber o que estava acontecendo. Mas a flauta tinha o poder limitado. Assim como a lâmpada, que só concede 3 desejos; assim como o encanto da Cinderela, que terminou à meia-noite. Nada além de alguns minutos e alguns pensamentos. A flauta não daria mais que isso. E o meu vizinho, aquele homem dos olhos cor de mel, continuará sentado debaixo da marquise toda noite, olhando as pessoas que passam acima dele, com medo de olhar, com medo de que lhe peça alguma coisa. Mas não, ele não pede nada, ele é um homem bom. Apenas toca sua flauta e pede a ela, no silêncio do seu coração, que as lembranças fiquem. E a flauta pede a Deus, com sua canção, que a vida do homem se transforme num conto de fadas. Pois só assim ele poderia ser salvo e ser feliz para sempre.

domingo, 14 de agosto de 2011

As aventuras e desventuras de um Pai chamado Brasil

Este texto foi escrito em 2005, no meu tempo de jornal "Paroquiano". Gosto de reler essas coisinhas antigas, acho umas palavras interessantes e vejo como cresci. :) Fica aí uma lembrança para o dia dos Pais. Que sejam felizes, esses pais maravilhosos!



Pai Brasil acordou às 6:00 com o sol nascendo no horizonte, colorindo lindamente o céu de rosa-alvorecer, jorrando raios de luz nos olhos das crianças que descansavam nas calçadas. Comeu um pedaço de pão dormido, o mesmo que o Diabo amassou, empurrando goela abaixo com um gole de café frio. Sentiu dores pelo corpo, nas juntas, nos músculos fracos dos seus 500 e poucos anos. Apesar da pouca idade, Pai Brasil anda mal das pernas.

Sobre suas sandálias Havaianas, já gastas de tanto andar, Pai Brasil foi trabalhar. Bateu ponto, suou a cara e a camisa velha, parou para almoçar. Pai come arroz e feijão. Quando tem. E guarda um pouquinho na marmita que é pra fazer um agrado para os meninos no fim do dia. Pai- Brasil tem fome, mas sofre mesmo é de ver os filhos chorando sem comida. Às vezes uma doação, uma caridade. Mas Pai está cansado de caridade.

Pai Brasil descansou sobre a grama verde às margens plácidas, o corpo cansado, os olhos tristes, marejados de Atlântico. No silêncio, Pai escuta as sirenes de ambulâncias e camburões, o brado retumbante de mães que perdem os filhos, de filhos que perdem os pais, de pretos que perdem a vida. O povo heróico pede socorro, e se são heróis, quem os vem salvar? Pai escuta o clamor diante de tanta violência, tanta dor, e tenta se lembrar do penhor da igualdade que, dizem, conquistaram com o braço forte. Pai Brasil dorme no seio da liberdade, mas tem medo. Pai Brasil perdeu o direito de ir e vir, e tem hora para voltar a trabalhar.

Pai Brasil cumpre as duras tarefas que lhe dão todos os dias e volta para casa. Amassado dentro de um ônibus lotado, empoleirado entre trabalhadores, estudantes e desempregados. Pai sobe o morro, entra no barraco e vê os meninos brincando no chão de poeira. Sente saudades da Mãe África. Mãe foi rejeitada, mal-tratada, quase esquecida. Falaram pros meninos que Mãe África não existiu, que não era mãe. Não falaram das qualidades, da sabedoria e do poder de Mãe África. Como se Mãe fosse um erro, um pecado. E Pai Brasil ficou sozinho, sem saber o que dizer pros filhos sobre Mãe África ausente. Às vezes, Pai chora escondido, quando os filhos estão dormindo, pensando na tristeza da Mãe África, nas feridas que ela sofreu, na injustiça cometida. Pai Brasil busca pela clava forte da justiça que até hoje não sabe onde está. Pai olha para a cara de cada um de seus filhos e vê a cara da Mãe África, e isso aumenta a saudade. Pai está cansado de ser sozinho.

Depois de dar o resto da marmita para as crianças, Pai Brasil cuida da casa. Tenta lavar as roupas. Mas Pai é homem e não lava a roupa direito, deixa a sujeira pela metade, não limpa tudo. Além disso, o sabão é pouco. E assim Pai Brasil vive com as roupas sujas. E ninguém se dispõe a lavar bem suas roupas. Depois, cuida da plantas, sabe que seu campo tem mais flores. E elas precisam de cuidado. E são muitas as plantações que correm o risco de serem destruídas. Os vizinhos estão de olho. E se Pai não ficar esperto, vão lhe roubar suas flores mais lindas.

Pai Brasil leva os filhos para a cama e se prepara para dormir. Mais um dia se foi na vida de Pai e ele não tem certeza sobre o amanhã. Senta-se olhando o firmamento estrelado, sente-se fraco e desanimado. Pai não suporta ver seus filhos pobres, sem identidade, sem dignidade, sem comida. Pai não suporta ver os filhos chorando de dor e quer que o sofrimento se acabe. Pai Brasil quer ver os filhos em paz, sem brigas e traições, sem roubos, sem mentiras, sem maldade. Ele sabe que será difícil. Mas Pai Brasil sabe que um filho seu não foge à luta, nem teme a morte, e se orgulha de ver os filhos cantando e sorrindo, apesar das dores.

Fertilizando a terra com suas lágrimas oceânicas, Pai Brasil abre os braços ao céu e reza. Pede a Deus, que também é Pai, que lhe dê forças para criar todos os filhos iguais. Gigante por natureza, impávido colosso, Pai é forte, é belo, é adorado. É sábio, e apesar do cansaço, não se desanima. Chorando, Pai Brasil dorme e sonha com o futuro das crianças. No horizonte, o sol do novo mundo. Que Deus não demore a atender aos pedidos do Pai amado Brasil.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Enquanto esperava a tarde, via a felicidade pela janela, chegando devagar com malas pesadas e lenço no pescoço. Sorria de leve, como fazia sempre, sem esforço algum no lábio inferior. Era sempre a alegria. Só que nesses dias havia ainda uma tristeza contida, guardada, que ninguém via. Só os próprios olhos diante do espelho eram capazes de reconhecer uma pequena ruga de lamento. Pequena. Tão pequena que se esquecia dela por quase todo o dia. Só se lembrava quando, inevitavelmente, se esbarrava na mesa da sala. A mesa lembrava. Também a cama, o sofá e a orquídea sobre o móvel branco. Nem sempre que se lembrava se entristecia, mas sempre que se entristecia, se lembrava. Não era nem dor, era um incômodo. Como cisco no olho, parecia que tinha um grão de areia entre o músculo e a veia. Bem no peito. Era areia e incomodava. Não por ter sido ruim, mas por não ter sido mais. Areia fora da praia, fora do lugar, amor fora de hora. Passava a mão na testa, apertava a fronte, sorria leve. E a felicidade perto, a apertar o botão do elevador.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Fiquei confusa. E entendi muita coisa, então. Porque eu pensava, e tanto pensava, que acabei dormindo sobre a mesa e rasgando o papel em que tentava escrever o meu nome, meu endereço, ano de nascimento. Esqueci todos os números. Esqueci todas as letras. Acho que até esqueci a dor. Se é que havia alguma no meu plexo solar, desfiando os fios da alma como se fossem novelos de lã. Um ai que tentei falar, mas não saia som, não havia voz, não havia força no meu maxilar. Só eu estava e mais nada. Mais ninguém. Pensei nas pessoas, essas que me ligam, me mandam emails, me esquecem durante a semana, as que aparecem no fim de semana, as que nunca mais apareceram. Quis esquecer todas elas e pensar nas que virão. Em vão. Aquelas deixaram mais que lembranças, mordidas eternas nisso que chamo de EU. Ficaram guardadas em caixas, gavetas e bolsinhas dentro de mim, mesmo que não saiba como são, mesmo que me lembre das vozes, dos cheiros e dos defeitos. Ficou alguma coisa inapagável (se é que essa palavra existe). E isso não é de todo ruim. Diria que foram sócias num grande empreendimento. Uma pena não poderem compartilhar do lucro – esse ser intenso e maravilhoso em que tenho me tornado. Não, a falta de modéstia não me incomoda, nem tampouco a ausências desses de quem falo. Eu também não compartilho do que hoje elas são. Não me faz falta, como também não falto na vida de ninguém. E tudo está certo assim.

Certeza? A de que daqui a duas horas não serei a mesma. De que me despedaço e me refaço a cada instante e por isso me faço mais forte, falante e formosa. Percebi que era assim e logo assumi um único dever – que eu mesma me impus, que fique claro – o de ser sempre feliz. Não essa felicidade rala que oferecem na TV, nas bancas e nas canções. Não essa felicidade romântica “amor-dinheiro-sucesso-barriga de academia”. Algo maior, que nem adiantaria tentar explicar porque eu não acharia verbos nem substantivos. Mas um cimento denso que fica na estrutura de tudo isso que se constrói em torno/dentro de mim. Felicidade em estado puro, essência, semente, matéria prima, que não se esvai com o vento deste furacão que me carrega agora. Fiquei confusa sim, quem não ficaria? Quem não fica quando tudo muda? Quem não está, afinal de contas? E isso não é ruim, como não o é a chuva fria que me leva para o cobertor e a saudade imensa que faz dançar. Não é ruim a dor que nos leva a compor nem o frio que promove os abraços. Das incertezas, movimento. Ação. Cada um no seu caminho, plantando umas florzinhas no jardim alheio, arrancando umas pedras no caminho do vizinho, carregando nas costas um que se machucou até que volte a andar. Com os próprios pés. Assim eu entendo.

sábado, 2 de julho de 2011

Tempo em comum

Respirar ao mesmo tempo; tocar com a face; suspirar de leve; fechar os olhos e não temer o medo de ser só; calar sorrindo e falar olhando; dormir profundamente sem querer sonho melhor do que já é real; ignorar o tempo dos semáforos; esquecer os itinerários; estar cego ao sol e imune à ventania; esperar o cantar dos bichos; ronronar como gato que acorda; esfregar a ponta do nariz na ponta de outro nariz – e sentir-se beijado; beijar sem culpa; encostar as costas da mão no lábio alheio; tocar o presente como se fosse tudo; querer que o futuro não venha depressa; parar a respiração. Respirar ao mesmo tempo. Não sentir falta nenhuma.

sábado, 11 de junho de 2011

Suicídio

M. tinha 26 anos. Era minha vizinha. Nunca a vi, se vi, nem sei. Morreu ontem. Enquanto eu estava dentro do metrô, ainda com os riscos dos sorrisos no rosto, depois de brincar com uns amigos. Subiu até o último andar e de lá jogou suas dores. Tinha um noivo que a traiu. Arrumou outra, depois de M. lhe ajudar a ganhar o dinheiro que ganhava. Ela não agüentou. Um bilhete, um ar-condicionado no caminho, um arrependimento visto pela vizinha que fumava do outro lado. Uma criança testemunha. Homens que vieram buscar o corpo: homens da polícia, o síndico, o porteiro, o zelador, o noivo que a deixou. A família de longe que ainda nem venho buscar a menina. Hoje só se fala nisso, só se chora por aqui. A manhã de sábado acordou com o barulho do silêncio de tristeza e agonia. E medo. Manhã sem sabor. Ou sabor de morte. Manhã sem sorte. Véspera do dia dos namorados. Dia sem amor nenhum.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Outro dia conheci uma senhora, dessas que parecem ser entidades. Preta, pretinha, de olhos claros, fina e com o corpo firme, apesar da idade. O olhar tinha um ar que não combinava com as rugas da pele. Mal entrei em sua casa, lançou-me:

- Qual seu nome?

-Mariana.

- Mariana.... Nome forte. Começa com Mar.

E hoje correndo na praia, vi a força com que as ondas batiam nas pedras resistentes, insistentes. Lembrei de mim.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Diante da barbárie

O que assusta não é só a loucura de um homem que sai atirando pra todo lado. O que mais assusta é que vejo cada vez mais uma matança de crianças, como se fossem pestes se alastrando, como se fossem doenças. Lamentável e assustador! Estão completamente abandonadas, mesmo em casa, onde os pais não se encontram mais (pois nem há mais "lares"), mesmo nas escolas, onde entra e sai qualquer pessoa, a qualquer hora, onde nós, professores, estamos tão reféns e rendidos quanto aqueles a quem deveríamos educar.

O que mais me assusta é ver a proliferação de armas de fogo, que circulam livremente, mesmo sendo ilegais, mas que todos sabemos que são distribuídas facilmente entre os mais diversos meios. Aterroriza ver a facilidade com que tais armas são descarregadas, por adultos, adolescentes e até crianças, em cabeças e peitos, com tanta frieza e covardia como se fossem dados tiros em sacos de areia.

Aterroriza ver como os jovens se relacionam (ou não), completamente manipulados por um mundo virtual, artificial, desaprendendo a convivência com as diferenças, não aceitando “o outro”, seja ele quem for, como for. Criam-se mentes isoladas em seus próprios mundos, com leis próprias, intolerantes, incompreensivas e incompreensíveis, que os especialistas tentam decifrar depois de um espetáculo de sangue como o que acabamos de ver.

O que mais me assusta e me apavora, com todo o pavor que pode tomar uma pessoa, é pensar que pode acontecer a qualquer momento com qualquer pessoa que amo – inclusive comigo – pois, eu não sei o que se passa na mente e no coração daqueles pequenos que tento manter atentos na sala de aula. Não sei o que eles querem. Nem eu, nem outro professor, nem mesmo seus pais que pouco tempo tem para ouvir as dores e alegrias daqueles que colocaram no mundo.

Todos chocados diante da tragédia, antes privilégio dos norte-americanos. Pois agora nós também temos jovens perturbados, assassinos suicidas. E não compreenderemos suas mentes depois de mortos. Talvez seja possível evitar outros crimes como este, tirando as armas das ruas, colocando mais segurança nas escolas e principalmente, educando cada indivíduo com a merecida atenção a todas as suas necessidades psicológicas, físicas e emocionais.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Vi este vídeo várias vezes. E sempre me encanto, me emociono e me derreto de rir com a cara desse garoto, sua alegria, sua ingenuidade e pureza. Quem já sentiu algo assim sabe como é a delícia dessa surpresa que nos traz o amor. Pena que, com o tempo, tudo deixa de ser surpresa e deixamos de nos encantar pelas pessoas e pelas coisas como se fosse a primeira vez. Que a gente consiga resgatar, nem que seja um pouquinho, nem que seja de vez em quando, a magia deste momento. Faz muito bem!
REVISTA PERSONARE

terça-feira, 15 de março de 2011

IRREVERSÍVEL

É irreversível. Depois que se jogam as primeiras palavras no papel, ou na tela que seja, já não há como voltar nem desfazer o feito. Está escrito e pronto, tarde é, impossível desdizer o que foi escrito. E tudo parece assim, meio substantivo, meio adjetivo, quase verbo. Palavra pronta, palavra tonta, palavra toda. Ideia incompleta, mas lançada. Irreversivelmente exposta, assim como estão expostos os ideais que carregam consigo. Como estão expostas as minhas palavras que são partes expostas dos meus desejos que são facetas expostas do meu ego que é raiz escondida do meu ser. Irreversível eu. Falei e pronto. Ponto. Palavra não volta atrás.

domingo, 13 de março de 2011

Mudanças

Eu já passei da fase em que se jogam pedras na beira do rio. Já passei da fase de correr atrás dos pombos para vê-los voando fugindo, assustados. Já passei dessa e de outras. Já não faço mais bolinhas com chiclete e nem dou gargalhada no meio da rua com minha turma de amigos. Eu já não sou mais de sair à noite para encontrar o namorado debaixo de chuva e adorar ficar debaixo das marquises fugindo da água, desculpa para um amasso. Também não sou mais de ler revistas e fazer testes pra saber quem eu sou. Eu já sei quem eu sou. Pelo menos sei o suficiente para não mais fazer certas coisas nem suportar outras tantas que me irritam, ferem ou contrariam. Não preciso mais aceitar tudo que me falam nem tudo que querem me ensinar. Já descobri algumas das grandes verdades que nos escondem quando somos crianças e que insistem em manter longe da grande parcela da população que vê TV aos domingos. Passei também da fase dos almoços em família. Agora meus domingos são só meus, só, e faço deles o que eu quero, quando quero, se é que quero fazer alguma coisa com este domingo.

Já passei, já passei da fase de achar que tudo é bom e todo mundo é legal. Já sei que não é nada disso que a gente imagina e nem por isso me deprimo ou desacredito do mundo. Passei da fase de achar que a culpa é do mundo. Afinal, que culpa? Não acredito mais que haja mesmo culpa por alguma coisa. É só a vida, seus caminhos, suas escolhas. Nossas escolhas.

Já passei da fase de querer tudo do meu jeito. Mas continuo querendo. Só que agora, o “meu jeito” tem um peso muito maior, é feito de forças que não conheço, deuses que nunca vi. Busco o meu jeito onde, até então, não poderia ver. Só agora eu vejo, só agora eu posso, só agora nesta nova fase. Porque já passei, já passei por coisas que me criaram e me deram a forma que tenho nesse instante, essa forma que acabou de se desmanchar e deu lugar a outra, que se desfez agora e veio a outra, que se faz em mim... eu já passei da fase de ter medo do fim.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Conto de carnaval

Quando acordou ainda havia um resquício de sereno que a chuva da madrugada deixara no ar. O vento soprava fresco lá fora, ela podia perceber ainda da cama pela fresta da cortina que balançava pesada. Levantou-se lenta, com o corpo mais dolorido que feliz, resultado dos dias passados em pé, caminhando entre a multidão agitada e barulhenta que pulava atrás da felicidade. Ainda era carnaval e isso a deixava meio ansiosa, um pouco por querer que ele acabasse, um pouco por querer desfrutar de tanta energia. No espelho, com o rosto molhado, pensou na fantasia, na maquiagem, no cabelo, na música alegre, nos amigos alvoroçados, no dia anterior. Pensou na infância entre os carros de escola de samba e as roupas das baianas que a vó costurava no quintal, lembrou das primas sambando, o avô com a roupa azul, a Sagrada Família. Ficou com preguiça e tristeza.

Depois de pronta, saiu ainda tímida, tentando fugir dos olhares dos vizinhos e do porteiro que certamente estranhariam a fantasia de borboleta verde que escondia a seriedade da moça tão calada que passava por ali carregando livros e pastas. Quase correu para o portão, fugindo dela mesma. E foi ao pisar na rua que finalmente se entregou ao clima de festa e liberdade que a todos envolvia. Jogou-se no aglomerado humano, sozinha, cantando todas as marchinhas, recitando todas as letras que sabia, sempre sorrindo para as pessoas que passavam. Um homem-bomba tentou abraçá-la e a moça, sorrateiramente, escapou-lhe por debaixo dos braços, rindo feito criança. Outras borboletas se encostaram para tirar fotos e fazer gracinhas; um super-homem de roupas molhadas chamou a atenção pelo tamanho da barriga e do bigode, distraindo-a. Neste momento foi que tudo aconteceu.

Começou um tumulto infernal no centro da praça e foi se espalhando como os círculos que as pedras fazem quando lançadas na água. Um barulho terrível, muita gritaria e gente correndo para todos os lados. A borboleta assustada não sabia para onde ir, nem o que fazer. Estava só, nenhum pássaro maior ou mamífero poderia protegê-la agora, e ela nem poderia voar de verdade. Correu para onde todos iam, sendo empurrada pela massa afoita e escandalosa. Ainda ouvia o som de um frevo tocando na esquina da frente e quis que todos estivessem dançando. De repente o tiro e um último grito. Tudo parou. O frevo se calou. A multidão se calou. A borboleta, já com os olhos borrados de suor e lágrima, parou. Só houve tempo para mais um suspiro quando um senhor vestido de odalisca a puxou pelo braço virando seu rosto lhe disse: Vem, sai daí, menina, não veja isso.

Ela saiu, foi andando pelas ruas do centro, em silêncio, sem esboçar um sorriso, vendo as fantasias jogadas no chão, os bêbados caídos nas calçadas, o lixo, as latas e papéis espalhados, os casais brigando, outros se beijando, serpentinas nos corpos dos travestis e batons manchando os marmanjos barbados. Quando já estava longe pode ouvir ainda o choro sufocado de uma mulher. Tirou as asas e desejou não estar ali nunca mais. Desejou que não houvesse mais carnaval, nem frevos, nem mortes. Desejou que todo mundo fosse os super-heróis, as fadas e os bichos que vestiam naquele dia. Desejou estar abraçada com quem não podia falar. Sangrou a borboleta por toda a terça-feira e só abriu os olhos na quarta-feira. Sentiu uma ponta de alívio. Nenhuma saudade deste carnaval.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O que querer

Eu quero só as palavras brandas

Que deixem azul o pedaço de céu da minha janela

Eu não quero o temor da vida, a dúvida do dinheiro nem a tristeza de quem não se deu

Eu não quero o vento forte, a ventania espalhando os papéis da minha mesa

Quero antes a calmaria, o mar tranqüilo

Tarde com café e bolo, como antigamente

Quero bom dia no jantar e cama ao entardecer

Flor quando morrer, música ao levantar

Quero abraço e beijo com gosto de chocolate quente – quando não for verão

E gelo no copo – quando o frio não congelar os meus pés

Quero antes a casa com jardim

E depois as férias

Eu não quero pensar dez vezes antes de falar

Não quero ter medo de pensar

Eu quero o verbo, o sujeito e o predicado

Eu quero antes a palavra – e principalmente a alma – aberta.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Silêncios ingratos, injustos, evitáveis


Guardo muitas palavras para mim. Elas ficam aqui, pulando entre a garganta e a boca. De vez em quando quase escapolem sem que eu perceba. Às vezes consigo pegá-las pelo rabo, quando estão pulando língua afora, e as volto para o fundo do fundo, onde penso que devem ficar. Algumas são muito mais ligeiras que meu senso autocrítico e acabam caindo, escorregando pelos meus lábios e soando feito eco nos ouvidos alheios. Outras são tão obedientes que murcham e ficam tão encolhidinhas que chego a sentir dó. Geralmente são as que fariam bem, palavras de amor, carinho, admiração, que ficam tímidas diante de seu objeto e acabam se recolhendo, não sem algum remorso. Pois, creio eu, estas deveriam sair sem medo, sem pensar duas vezes, sem titubear um instantinho que seja, já que o efeito é apenas o bem.

Mas, ai de mim!, aprendi a me calar por pura precaução. Para não falar besteira, para não magoar, para não ser mal compreendida. Quanta balela! Quanta baboseira! Quanta palavra perdida! Quisera eu ser como o vento, que se joga de qualquer jeito sobre qualquer um que se disponha ao ar livre, pronto ou não, para levar baforadas frescas na face! Quisera eu deixar escorrer todas as letras que me vêem ao pensamento, e aquelas que nem passam pela cabeça porque saem direto de onde brota a emoção. Quisera eu não ser tão incompreendida por causa desse silêncio que me toma de susto e fica aqui colocando névoas no meu bem-querer, escondendo entre nuvens os raios luminosos do sol que brilha em mim. Ai, que coisa, querer e não saber falar, pensar e não ter voz que molde tantas idéias, abrir a boca e contentar-se com um suspiro que disfarce a declaração! Ai, ai de mim!

Não, não chego a achar-me incapaz. Tenho pena mesmo é dessas palavrinhas recolhidas nesse espaço tão pequeno de gente que sou eu. E mais pena ainda dos meus interlocutores, que voltam pra casa sem saber quantas palavras poderiam receber – se é que queriam mesmo me ouvir – e ficarão surdos à sinceridade dos meus pensamentos.


Foto: Eu, em silêncio, deixando o que é maior falar por mim. (por Charlene Bicalho)