quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Se acabar


O mundo que se acabe se quiser
Já limpei a casa, perfumei meu quarto
Passei esmalte vermelho
Enchi a casa de flor
Tem cor e amor pra todo lado
Tem vida de sobra em cada canto
O mundo que se vire em desencanto
Ele que se vire se acabando.

Já comi todas as bolachas belgas
Já enchi a cara de chocolate e capuccino
Tomei meu chá, tomei meu banho quentinho
O mundo se acabar, que seja caladinho
Porque se eu estiver dormindo não quero perder o sono
Prefiro ficar sonhando a vê-lo desmoronando.

E se for cair, seu mundo, que caia pro lado de lá
Em cima de mim  já não dá
Porque tô com a roupa engomada, limpa cheirosa e passada
Vai que o mundo acaba...
Quero estar bem vestida, bonita e cabelo arrumado
Porque pode ser que nesse estado – de pura calamidade pública
Encontre um moço ajeitado, na fila do mundo acabado
E então já não tem mais desculpa:
O mundo acabou, não há culpa
Que segure meu amor tão guardado.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

MURMÚRIO DAS ÁGUAS



Cristal
Cristalina
A gota na minha retina
Cai lúcida
Calada e escorregadia
Vai pela pele do rosto encosta no lábio e bate no chão

Terra
Terreno seco
Secura de coração.
Preciso de água pra molhar esse piso
Pra molhar os meus olhos
Pra encharcar os meus sonhos
Pra inundar minh´alma que precisa de mar

Murmura o vento na minha janela
No meu farol
Murmura o rio que vejo de cima
Murmura a chuva que cai nas minhas costas
Murmura o sangue que corre lá dentro
Murmuram todas as águas de mim

Cristal
Cristalina a água da boca que beija vida
Que fala amor
Que canta força
Que grita o mundo
Bendita é a boca que se abre sem medo

Cristal
Cristalino sorriso que escorre feito cachoeira
Enche o rio e se joga no mar
Feliz do mar que se deixar navegar
Feliz da alma-água que navega sem rumo
Feliz do navegante que murmura com as ondas
Feliz da água que corre sem pressa de chegar

Fosse eu o mar infinito
Fosse eu um rio caudaloso
Fosse eu uma cachoeira
Fosse eu uma gota d´água
Fosse eu um pinguinho de chuva
Escorreria nos seus ouvidos todas as canções
Essas que não cantamos enquanto paramos para ouvir
O som
O doce soar
Das nossas águas.

sábado, 17 de novembro de 2012

Sabadinho


Dor de cabeça cansaço tristezinha de leve saudade de sempre lembrança do sonho noite agitada pão sem gosto
Café pra acordar chá pra acalmar fruta pra adoçar música pra lembrar prece pra esquecer
Palavra que não vem palavra guardada na boca boca sem beijo boca sem água boca sem fome
Olhar perdido olhar lembrado olhar profundo olhar sem fim olhar sem medo olhar sem tempo olhar de alma olhar encantado olhar sem mim
Suspiro desânimo raiva vontade flores na casa flores no jarro barro quebrado vento soprando peito apertado lua sorrindo frio gelado coração em desencanto
em descanso
em desalinho
pausa para ouvir o passarinho.


sábado, 10 de novembro de 2012

Outras notícias





O frio me dói a saudade.
A saudade me dá sono.
O sono renova meu corpo.
O corpo se esquenta em movimento.
O movimento desperta a alegria.
E a alegria me traz a força de ser feliz a cada dia.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Aqui


De vez em quando parece que não dá
De vez em quando parece que vai
E não vai
Aí você esquece, entrega e segue
E tudo acontece.



terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mandando notícias




Tem gente que pergunta, tem gente que quer saber de tudo, tem gente que nem sabe ainda. E pra quem espera, as notícias são frescas e frias. A névoa começa a chegar pela manhã. Às 7 ainda é noite e eu me viro de lado pra continuar sonhando. Às 8 e meia um vizinho começa a gritar de dor. Por tantos minutos fico a olhar o teto baixo de madeira, ouvindo os gemidos dolorosos do moribundo que nunca vi. Às 10 eu começo, sem hora de parar. O banho é quente e o café constante. Os doces, muitos. Também muitos os cheiros e barulhos de Lisboa. A fumaça do cigarro me irrita, muito, e eles fumam o dia todo. Nuns segundos dá tristeza, numas horas dá saudade e nesses tempos eu encho a alma de coisa boa: música criola, amigos de ontem, um samba pra lembrar do que é meu, rosas pra colorir a janela que vê o Tejo. Fado dá dor de cotovelo, dói até no coração que não sofre. De vez em quando dá vazio, quando não, só plenitude – paisagens novas, novos lugares, olhares, novo velho mundo que se renova. Novos movimentos me encantam: as danças negras que rolam por cá, as línguas que se misturam com as misturas do mar, os calouros vestidos em capas pretas a cantar pelas ruas da cidade. Ao contrário das apostas, não arrumei um português, nem gajo de terra alguma. Tenho visto muita gente bonita e gente feia também. Tenho visto muita gente de todo tipo. Não como direito, ando mais que as pernas, danço em castelos, leio no metrô. Uns marinheiros passam pela rua, umas senhoras estendem roupa no varal fora da janela. Minha coluna dói, meu dedo do pé melhora, os livros começam a se multiplicar na estante. Vou seguindo um bocadinho cansada, mas bem, bem feliz de estar bem por aqui. 

(Foto tirada no Castelo de Monsaraz)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Em laços




Te ver nessas palavras é quase um alívio.
Um suspiro de fundo musical enevoado
Neblina com cheiro de eucalipto
Laranja e jasmim
Lavanda na pele
Lava-se a alma.
Quase te sinto perto quando tão longe
De você nem sei
Nem digo o que sou
A verdade é que nada importa: nome-número-telefone
Passamos disso
Te encontro agora onde estou só comigo
Você, minha projeção, desdobramento de mim
E a beleza e a luz que me encantam-
Sim, agora eu posso saber
Sou eu em você.
Você em mim.

Quase me vejo nas suas letras
Porque somos pedaços de uma coisa só
Maior
Eterna
Esterno: Osso que ressoa o amor
A dor
O amor.
Quase me sou em você
Respiro e pronto.
Vazio que aquieta
Alma que acerta
E aceita
Aceito.
Saudade sem pressa
Ilusão que adormece.

Acende, cala e esquece
Acontece
Que já nos despertamos.
Me faz
dormir em paz.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Movimento


Aprendo a colocar o coração nos pés quando danço.
Fazer o corpo rodar é mais fácil que trocar a alma de casa, que avançar um degrau
Já não dou os mesmos passos de antigamente
Já não se tocam canções como antigamente
Já não há corações como os de antigamente.

Hoje me faço mais completa porque já sei o que não querer
Aprendo a colocar o coração nas mãos quando encosto
Colocar o coração nos braços quando abraço
Colocar o coração na boca antes de sorrir e falar e cantar
Já não me falo como antigamente.

Aprende-se com o tempo, só e unicamente com ele
Não se tem mais tempo como antigamente
Quando somente o sol a lua ou a chuva
E tudo em seu lugar.

Agora, justamente agora
no instante em que ouço o tilintar da gotas na janela
Sem chuva, sem água, sem verão
Justamente quando o vento faz a curva do outro lado da minha orelha
Uma pétala cai.

A terra se renova. A flor se renova.
Um casulo que se fecha, uma borboleta que nasce
um girassol que gira e só.

domingo, 24 de junho de 2012

Não tem lugar pra você



Era um banco. Ou poltrona, nem lembro.
Cinema ou ônibus, avião, consultório de dentista. Nem importa.
Sentei e fiquei sentada. Fui porque tinha que ir mesmo. Eu tinha que ir e fui e estava ali sentada.
“Posso me sentar?”, ouvi bem de perto.
Nem olhei. Continuei no meu silêncio quebrado com a doçura da minha própria voz: “Não tem lugar pra você.”
E continuei. Feliz da vida.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O que fazer nos dias



De vez em quando
Eu calo
De vez em quando
Eu falo
De vez em quando
Eu penso
De vez em quando
Dispenso
Só de vez em quando
Descanso.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Para Roberto


Hoje é aniversário do meu irmão mais velho, o primogênito da família. Poderia só mandar os parabéns, mas acordei inspirada. É que Beto faz tanto parte da minha vida e do melhor dela, eu acredito, que quando penso em mim criança, nas alegrias que me fizeram ser o que me tornei, Beto está presente.

Aquela máxima que diz “companheiro é companheiro, filho da puta é filho da puta” compartilhamos bem cada sentença dela. Quando nos acompanhávamos era de verdade: nos banhos de chuva, nas brincadeiras de polícia e ladrão pulando pelas camas, nas casinhas feitas de cortina no sofá, escorregando pelos barrancos nos cascos daquelas árvores enormes (que até hoje não sei o nome), arrebentando os dedos nos carrinhos de rolimã... E quando era pra ser FDP, ele era! Era um tal de contar mentira pra mãe e me incriminar sem razão, me bater abusando do seu poder de menino – e mais velho! – fazendo aquela cara emburrada que só ele sabe fazer quando quer criticar alguém. Ah, sem falar, claro, de quando adolescentes, empatar os garotos que porventura ousaram desejar a irmanzinha dele, singela, doce e pura. Hahahahahahaa!  (Conselho para as meninas: evitar curtir baladinhas e afins com irmãos ciumentos. Você não pega ninguém, ou melhor, Ninguém te pega!)

Enfim, muitas e muitas historinhas me veem na lembrança e era só pra fazer uma homenagem. Uma homenagem que vem cheia de saudade, cheia de desejos de que esteja tudo bem nesse coração que há anos vive longe de mim. Só um jeitinho mineiro de dizer que estou aqui pensando em você e agora, neste outro ser que é um pedaço seu, pedaço nosso, porque é a primeira gerada depois de nós. Só algumas palavras para dizer que estou feliz por vocês, com vocês e mesmo de longe, fico espiando pra ver se está tudo bem. E quando não estiver, eu estarei aí, mais perto.

E que esquisita essa vida, né?! Às vezes acho tudo estranho, isso de crescer e dar conta dessa vida chata de adulto, complicada e doída na maioria das vezes. Mas a gente que acredita em algo maior segue confiante e vai em frente! E o que lamento mesmo é não ter mais perto os irmãos que a vida me deu, aqueles com quem dividia os biscoitos recheados. Sim, eles fazem falta. Fazem falta porque com irmão a gente pode brigar de verdade, e o amor continua. Para irmão a gente pode contar as verdades, porque o amor continua. Com irmão a gente pode encarar todo mundo, porque diante dos outros, os irmãos formam um exército – mexeu com um, mexeu com todos! Ah, e como é bom saber disso.

Então, meu irmão, que fique registrado o cumprimento da mais apaixonada das irmãs, a que mora longe, a artista, a que estuda muito, mas que nunca deixou de pensar em vocês. Não desejo parabéns hoje, mas a vida toda, desde sempre até a eternidade. Não desejo só felicidades, mas todas as felicidades possíveis e impossíveis. Desejo que tenha ternura para encarar a vida, que tenha sabedoria para encarar as dores, que tenha amor, muito muito amor, de todos os lados. Que você tenha muita força, essa força que eu peço a Deus todos os dias para mim e pros que precisam. E sinceramente espero que você seja uma pessoa melhor a cada dia, melhor para si mesmo, generoso e gentil, melhor para os outros e melhor para criança que te espera. Feliz, feliz, feliz aniversário! Que o ciclo que se renova hoje venha com muita luz, afeto e amor! E não precisa repetir: eu te amo, cara!

(Na foto: nosso primeiro de muitos carnavais. Ele ali, tomando conta! :) )

sábado, 7 de abril de 2012

Páscoa em família


Jorge levou um susto quando entrou no supermercado e se deparou com um teto todo colorido com ovos de chocolate. Todas as formas e tamanhos. Parou e pensou, tentou se lembrar do dia, perguntou a alguém que passava.
- Que dia é hoje?
Mal tinha acabado o verão, ele estava aliviado com o fim do carnaval, fim das viagens, bagunças, “gastação” de dinheiro, feliz em voltar para a velha e boa rotina de sempre. E viu sua tranquilidade (ainda por cima sem trema!) ir embora ao se dar conta de que dali a pouco seria Páscoa. “Ai ai ai ai ai!!! De novo!”. Pensou com seus botões. Não adiantava, os supermercados, as lojas e a tv não o deixariam esquecer mais um feriado, o melhor momento para se vender coisas, comidas, bebidas e o que mais se poderia consumir...
Chegou em casa e fez um distraído comentário com Vanda:
-Menina, você acredita que já estão em clima de Páscoa? O mercado tá parecendo um carro de escola de samba, todo cheio de alegoria, uma coisa horrorosa!
- É mesmo, querido, temos que pensar no que fazer no feriado desse ano.
- O que fazer?? Como assim “o que fazer”? Você ainda quer fazer alguma coisa depois desse carnaval na praia?
- Jorge, esqueceu que suas sobrinhas vem passar o feriado aqui em casa? Combinei com sua irmã, elas devem ficar toda a Semana Santa...
- Semana Santa com as meninas da Alice? Meus Deus, quero ver o que vai ter de santa nisso...
Saiu, enquanto a mulher guardava as compras e foi pensando como iria enrolar as sobrinhas desta vez. As garotas certamente iriam pedir aqueles malditos e caríssimos ovos de chocolate e, como eram os “tios mais legais” que elas tinham, não poderiam decepcioná-las. Mas Jorge estava realmente sem paciência, sem ânimo e sem dinheiro para mais um feriado de festa, muita gente falando ao mesmo tempo, aquele almoço com sogra, cunhados, etc., etc. e mais etc. Fazer o quê?
Na semana anterior combinou com esposa que traria menos peixe dessa vez. O preço do bacalhau tinha aumentado, o vinho também estava mais caro. Pensou em pescar uns peixinhos no rio da cidade, mas desistiu só de pensar na quantidade de lama e lixo que havia na água. Bom, deveria diminuir o tamanho da torta e da panela de peixe ensopado. Pra isso deveriam diminuir o número de pessoas no almoço.
- Tá maluco, né, Jorge? Como é que vou falar pra mamãe não convidar todo mundo? Fazemos isso há anos, esqueceu? ANOS! Não dá pra mudar a tradição da família só porque vai faltar peixe. Você tem cada ideia...
Primeiro plano descartado. As meninas chegaram e a casa numa animação que só vendo. Um dia ele chegou bufando, quando as crianças estavam na sala, e falou bem alto:
- Galera, esse ano o coelhinho da Páscoa não vem!
O filho pré-adolescente fez cara de quem não entendeu nada, as meninas fizeram cara de choro.
- Como assim não vem, tio Jorge? E os nossos ovos?
- Então, o titio conversou bastante com o coelhinho e ele falou que tá com problemas de família. A senhora coelha vai ter filhinhos e ele não pode deixar ela sozinha, não é mesmo?
- Mas quem vai trazer nossos ovos de chocolate?
- Ninguém, ora! É o que estou dizendo.
O filho deu uma gargalhada e as meninas começaram a chorar.
- Calma, meus amores, vamos pensar diferente. Afinal, Páscoa não é chocolate. Pensem no renascimento... Vocês sabiam que antigamente se presenteava com ovos de verdade pintados à mão? Podemos recuperar esse costume, o que acham?
As meninas saíram correndo, chorando, chamando pela mãe. Vanda olhava encostada na porta, com aquela cara que Jorge bem conhecia. Lá vinha bronca:
-Você enlouqueceu, meu filho? Olha o que fez com as meninas, como é que vou explicar pra sua irmã?
Sem titubear e sem se entregar ao olhar furioso de Vanda, Jorge deu um beijo na testa da esposa e disse calmamente:
- Contenção de gastos, querida. Pelo menos vai ser uma Páscoa diferente...





sábado, 3 de março de 2012

Sem Título


Se não fosse assim, talvez outro som embalasse os fins de tarde sem chuva
Talvez outro tom contornasse o bailado das coisas miúdas espalhadas mesa
Talvez outra cor enfeitasse o balanço das saias e dos cabelos.
Se assim não fosse, talvez eu tivesse mais sono ou mais sede
Talvez um falsete
Talvez nada disso – não disse que não.
Talvez existisse outra casa, outra barca, outro mar
Ou só um rio, um arrepio, um caminho
Talvez um desvio
Um atalho – outro modo de chegar no mesmo destino.
Se não fosse assim talvez um cansaço
Um silêncio
Outro abraço que não esse
Outro beijo que não esse
Outro sonho que não esse.
Se não fosse assim quem sabe uma tristeza eterna de pernas desencontradas
Quem sabe o açoite injusto de amores afastados
Quem sabe a solidão insonssa dos sábados inabalados.
Se não fosse assim, talvez sem sorte, sem riso, sem rima, sem saudade
Talvez até felicidade.
Mas ainda assim, se assim não fosse (feliz de quem sabe o que é)
Faltaria um pedaço
Faltaria um compasso
Faltaria saber como é – e graças!
Tão bom que seja assim.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Pré-carnaval


Já é carnaval na rua e eu nem acordei direito. Não enxergo direito. Uma névoa abraça meus olhos e não quero pensar em acordar. Parece que foi ontem ou anteontem que pedi um pouco mais de silêncio e minha cabeça ignorou. Fiquei sozinha e quase triste por não saber o que fazer. Mas mesmo assim saí de casa, saia longa, salto alto, rímel, sem batom. Saí pra não ficar em mim, calada. Saí pra ver o povo, as calçadas, os pés andando em pares, quatro pés caminhando lado a lado.

Já é carnaval nos blocos e eu nem terminei o mantra, a oração, o difícil meditar de cada dia. É tanto barulho e tamborim que já nem escuto mais o coração, o sangue correr, o piscar dos cílios, como eu fazia antigamente. Há muito, muito tempo atrás, eu podia sentir o som do piscar dos meus olhos. Era intenso, quase um transe. Hoje não consigo mais. Nem sei por quê.

Já tem samba na avenida e eu nem acabei o texto, nem escrevi uma página, nem respondi aos emails. Tem tanta coisa aqui dentro de casa que parece que a folia começou em mim, caiu da minha janela e se espalhou cidade afora. E eu nem pensei no seu sorriso ainda, nem abracei direito ainda, nem falei do amor que sinto e queria esquecer. Nem pensei com calma na noite de ontem, nem telefonei para quem devia, nem anotei na agenda o recado que tenho que te dar. Que queria ficar de olhos fechados, de perto, até decorar o cheiro do seu pescoço, até aprender a curva da sua orelha, até fixar a imagem que é tácita demais. Que pensei em esperar acabar a festa pra poder respirar mais fundo e calar o suspiro na sua boca. Que amanhã me parece tão longe só porque não é dia de dançar com seus braços segurando meus ombros, suaves, sem pressa de ser.

Já é carnaval e o dia está quente, e eu nem troquei de roupa, nem fiz a fantasia, nem cantei a marchinha do Pierrot. Nem vou fazer nada disso. Nem vou dançar frevo. Nem vou sambar de biquíni. Nem vou bater tambor. Nem vou. Prefiro ficar aqui, ouvindo de longe os batuques dos agogôs; prefiro ficar aqui, desenhando na parede o contorno da saudade, do silêncio e da vontade. Prefiro dormir mais cedo, acordar mais tarde, tomar suco de fruta e me alongar feito gato pelo chão frio e limpo. Já é carnaval mas ainda estou devagar, lenta e lerda querendo me jogar no sofá e ficar com as pernas na parede, cabeça pra baixo, inventando um outro jeito de ver a vida à minha volta. Ficar assim até passar a fome, o juízo e o cansaço. Aí então, tomar banho gelado, pintar os olhos e as unhas de vermelho-paixão, descer escadas e fazer a festa. Nem que seja por um dia, antes das cinzas, nem que seja na minha rua, pertinho, pra poder voltar correndo se eu me assustar.

Já é carnaval lá fora e eu ainda nem descobri você, nem entendi direito, nem te encontrei do jeito que eu gosto. A multidão tem pressa demais, pois já é carnaval. Eu de cá sem pressa nenhuma. Devagar, no contratempo, na contradança, esperando o intervalo que existe entre o seu olhar e o meu beijo. Aguardando o ar que sai da boca e do nariz compassado, denso. Esperando passar o bloco, a banda e o bando de gente pulando sem quê nem pra quê. Já é carnaval na rua e eu nem dormi direito.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Afrobeat



Hoje eu tô afrobeat
Tony Allen, Fela Kuti
Hoje eu tô afro-samba
Baden Powell
Tô Timbalada
Tô música afro, afrodança
Afrobrasileirafricaneguinha
Afro tambor, afrisson
Hoje eu tô na batida
No batuque
Todafro, sacolejante
Tô no semba, no sambangolê
Tô assim, afrossim
Hoje eu sou afrobeat.






quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

As meninas da Luz


São putas. Andam pela tarde, quase bem vestidas, mulheres como as outras. Feias. Nem velhas, nem novas. Todas putas. Não há como negar. Estão quase cansadas. Só não se dão ao luxo de parar porque é quase hora do jantar e o almoço ainda não chegou. Ele virá por muito pouco. Talvez a roupa nem saia do corpo, talvez nem se atrapalhem os cabelos e o dever estará cumprido. Voltam a caminhar.
São mulheres e certamente esperavam mais da vida. Como as outras, sonharam um dia com a felicidade. Mas a vida, injusta como é, lhes deu a Luz. Não sonham mais. Perderam em tantos cantos e tantas camas aquilo que toda mulher guarda para o homem de sua vida. Sim, toda mulher guarda, no seu lugar mais sagrado, algo para oferecer a um só, o último, mesmo que não seja único. O gozo mais sincero, o gozo da alma, aquele que faz exalar amor por todos os poros. Mas estas mulheres perderam este tesouro. Não por entregá-lo a alguém, mas antes por não ter a quem entregar. Assim, deixaram ir aos poucos, um pedacinho para cada um. Nem tão intenso que um homem pudesse perceber e adorar; nem tão leve que não as fizessem chorar. Assim, a cada parte que se entrega deste tesouro, um pouco de lágrima se lança do corpo, seja durante o ato, seja diante do espelho enquanto se lava a boca e pescoço molhado.
São quase velhas, quase no fim da estrada, quase agradáveis aos olhos sedentos de prazer. Mas há muito deixaram de ser meninas e não acreditam mais em outra coisa que não seja “fazer o bem sem olhar a quem”. Sem olhar nos olhos, sem beijo na boca, trabalham e garantem a vida de alguns filhos, algumas mães enfermas, alguns namorados desempregados. Garantem o mercado, a circulação de bens, a diversão dos homens. E ninguém lhes garante nada. Nem mesmo a vida – ingrata–, nem mesmo deus – se existisse –, nenhum santo ou político. Não faz diferença para ninguém, essa é a verdade. E para elas, nada mais que uma metáfora – Luz. Mas estão quase cegas. 

Tempo e contratempo



Há dias que são como uma pausa musical. O tempo necessário entre uma nota e outra, de dentro do ritmo, espera sem a qual tudo se descompassa e o som se esfumaça no espaço. Há meses que são como aquelas notas rápidas, tocadas quase em desespero pelo pianista na ânsia de ser mais rápido que a própria dor. Ser mais rápido que a própria dor. Parece que é o que estamos tentando por séculos, usando todos os artifícios e artimanhas que temos em mãos. Meditar antes que a ansiedade chegue; rezar antes que o desespero apavore; falar antes que as palavras não ditas se embolem no corpo; calar antes que a briga comece; gritar antes que nos digam o que fizemos de errado; fugir antes que tudo fique sério demais.

Não me acostumo com os passos errados. Gosto sim, dos contratempos. Gosto quando os pés se lançam fora do tempo forte, marcando o intervalo, dançando no silêncio, o tempo vazio. Gosto do tempo vazio, quando só silêncio é possível. Silêncio e espera. E quem disse que a espera é passiva? Meu silêncio é inquieto, dançante. Contra a minha vontade, por vezes, mas é este silêncio que se faz por hora. Tempo, tempo, contra (com o tempo forte no a) marcando as desdanças da minha vida. Tenho a impressão de estar na coreografia errada. Vez por outra dou uma olhadela de lado pra ver se estou com o par certo. Mas vai saber... melhor é seguir o compasso e deixar o ritmo da vida seguir seu fluxo. Errar também é fazer música.

Sinto que este intervalo é mais que uma parada antes do próximo instante. Sinto que o correr das horas deixa alguma coisa mais leve, leva alguma coisa que não é mais parte de mim. Agora, sinto-me no contratempo, entre o sustenido e o bemol, entre o giro e o próximo passo, no ar, em suspensão. No mais belo e divino intervalo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

I'm gonna miss you


O voo chegou na hora marcada. Em ponto.
O ar aqui é diferente.
O vento aqui é outro. Tem cheiro de mar.
Sem fila para o táxi.
Tudo muito rápido. Nada muito fácil.
Rádio ligado. The Manhattans. Kiss and say goodbye.
A janela aberta e vejo o aterro, Pão de Açúcar, céu de chuva.
I’ m gonna miss you, I’m gonna miss you.
Muito mesmo.
É só mais uma despedida.
É uma bela trilha sonora para quem chega de viagem e sente o vento nos cabelos.
Bem cena de filme.
Cena da minha vida. Minhas despedidas.
Algumas assim, kiss and goodbye.
Outras somente o adeus.

Cheguei em casa, voltei pra mim.
I’m gonna miss you.
Demais da conta.