terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Fechando o Jardim


Então é hora de ir. De vez. Sair daqui e deixar tudo. As flores estão quase todas mortas e as que restam não resistirão ao sol desse verão. As folhas caídas já foram levadas pela chuva ou desfazem-se em comida para a terra quase seca. Hora de fechar os portões desse jardim.
Desde que plantei as primeiras sementes, muito mudou. O tempo agora parece mais afoito; o sol parece queimar mais; as casas tomaram parte do terreno antes baldio; há muitas luzes na cidade em volta e muito barulho das máquinas projetadas para afastar os humanos da vida. O rio secou aqui.
Quando cheguei havia árvores, uns passarinhos que cantavam pela manhã, umas crianças que corriam entre as plantas. As folhas secas estalavam cochichos nos meus pés. Costumávamos todos dançar no fim de tarde, antes do pôr-do-sol. Era uma vida colorida. Eram cores de inocência e frescor.
O tempo correu no meu jardim. Muitas visitas, muitos encontros felizes, alguns mais rasos, uns bem intensos, umas tristezas descabidas. Pessoas inesquecíveis, outras fáceis de esquecer. Abraços e beijos, sorrisos e muitas despedidas. Danças em par, em trios, em grupos, danças em solidão. Alvoradas eternizadas nas canções da natureza, entardeceres trançados nos encantos de olhares profundos. Tantas lembranças. Tantas saudades. Tantas vontades desfeitas, outras rarefeitas. Vontades despertas a cada flor que crescia.
A chuva caiu, o vento passou, o sol aqueceu, o sereno acalentou. A lua derramou luz e sonho, as estrelas despertaram esperanças, as nuvens ensinaram o inconstante, a terra ensinou a ter firmeza, a raiz trouxe a força, as folhas mostraram o balé da queda livre como quem se entrega à vida sem resistir ao inevitável. Aprendizados de jardim.
A metáfora que escolhi para este lugar, o jardim imaginário onde plantei meus sonhos e minhas lágrimas, deixa de ser, em mim, o espaço sagrado. Não que tenha perdido o sentido. Mas eu me perdi desse lugar. Cresci com as árvores. Despetalei algumas dúvidas. Enraizei algumas certezas, entre elas a de que serei eternamente esse caminho em transformação. Serei a estrada que me leva a outros jardins, a outras casas, outros rios, outros descaminhos. Serei eu mesma a passagem por onde pretendo chegar ao lar, a casa que, enfim, tento construir nessa existência. Ela ainda não existe fora dos pensamentos. Mas para chegar até lá é preciso deixar o jardim. E por isso, só por compreender a necessidade do movimento, de partir, de sempre devir, é que parto para não voltar. Esse lugar não é mais meu. Não é de ninguém. Vou e não sei para onde. Mas estou indo.
Este ano de 2013 veio com a intensidade das marés em lua cheia. Por dentro e por fora, os movimentos foram incontornáveis. Para mim, fecha-se um ciclo longo e denso, um ciclo de alguns anos de florescimento. Nada fácil, mas nem tão difícil. Nada do que me arrependa. Muito para me sentir feliz, mais a cada dia. Acho que criei este lugar, este jardim, para me sentir acolhida, já que em terra estranha. O Rio de Janeiro é lindo por fora, mas cria alguns vazios por dentro... e assim fui me preenchendo, inventando um meio de não estar tão só. E nessa brincadeira de plantas e flores a vida foi me oferecendo lírios amigos, rosas solidárias, jasmins companheiros, damas da noite perfumadas, margaridas divertidas, cravos carinhosos, orquídeas, azaleias, crisântemos. A vida em flor.
Mas como tudo que floresce um dia morre, despetalou-se meu tempo. Vai o ano e chega um outro tempo em mim. Hora de renovar as vontades e as verdades, hora de começar de novo e insistir no caminho do coração, o caminho do amor. Despeço-me Aqui do meu Jardim. Com alguma ponta de nostalgia. Mas há mais ímpetos para o presente. “Não tenho tempo pra guardar recordações...”. Sem malas, sem caixas, sem pesos. Só histórias. E um desejo imenso de fazer de cada passo um novo começo, uma nova chance de ser feliz de novo e de novo. Até que encontre um lugar, a casa que há aqui dentro, A Casa com Jardim.
Deixo, pois, este jardim. Não estou mais aqui. Agora não estou em lugar nenhum.

 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Desencontro

E foi assim: sem pé nem cabeça, sem começo nem fim. Um mar de distância entre os olhares sem lágrimas, um barco afundado antes do mar alto. Costura sem nó, fita sem laço, laço em desenlaço, desfeito sem dó.
A velha nem pensou duas vezes. A vida é isso, afinal: caminhos, tropeços, recomeços.
A jovem tentou chorar sem sucesso, ensaiou alguma raiva, uma tentativa de dor que não vingou.
A criança, sem nada perceber, tirou a poeira do joelho ralado e correu atrás do passarinho que voava sem rumo. Para o alto. Para longe.
E foi assim: sem palavra, sem língua no mundo que explicasse o não dito, o maldito medo do não.
A velha limpou as janelas. A moça trocou o vestido. A criança dançou sem precisar de música. Dançou, enfim.
E foi assim. E foi sem ter sido. Terminou sem começar. A semente, potência de vida, minguou enterrada nos silêncios das terras não regadas. A beleza, leveza da alma, desbotou escondida nos entulhos de tempos passados. E o afeto, bálsamo sagrado, perdeu mais uma batalha, escorreu pelo canto empurrado pela pressa de tanta liquidez.
A velha não entendeu. A jovem não entendeu. A criança não entendeu.
Ninguém perguntou o porquê. Ninguém falou o porquê.

E foi assim.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Na chuva

Parece que chove a minha vida inteira
Corpo molhado de não mais querer
Escorre água, rua, rio
Fria boca da noite que gela por não dizer

Da chuva, sonoro silêncio
Madrugada e tudo já não há
E me lembra Drummond: Minas não há mais...
Nem Rio, nem Tejo, nem outro lugar

Parece que dorme essa chuva inteira
Derrama gota calada sem rancor
Olhos que se fecham e tudo passa
Amanhã sem sangue, sem letra, sem dor

Chove, menino, chora
E toma o chá de alecrim
Nem pense, nem volte, nem fale
A chuva segue pro mar, enfim

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Festa de Desaniversário



Aniversariar. Verbo que todo mundo faz, mas nem todo mundo sente. Acho que passamos a sentir os aniversários quando ficamos mais velhos, quando o dia deixa de ser de festa, bolo e velas a soprar e passam a ser dias de memórias, planos e rugas. Uma celulite que você não conhecia. Uma linha de expressão no contorno do sorriso. Um olhar comum no espelho pela manhã. E para os que acreditam nos ciclos, dia de recomeçar com todas as forças.

Aniversariar é nascer de novo, lembrar do útero quentinho que te pariu e encarar o mundo frio em que se vive agora. É ter uma nova chance – e se dar uma nova chance – de começar outra vez, sem medo de abandonar os padrões gastos, os pensamentos repetidos e os sentimentos mofados. Tomar fôlego, como no nascimento, respirando pela primeira vez. Dar-se o direito de abrir os olhos e respirar como da primeira vez. E saber que podemos fazer isso todos os anos pode não mudar a vida, mas dá um alívio...

Hoje eu sofro de aniversário. Completo anos de vida aqui na terra. Trinta e dois invernos renascidos, carregando este ser que habita meu corpo há três décadas. E se aniversário é aquilo que se repete todo ano, hoje eu quero desaniversariar. Não quero repetir nenhuma data, nenhuminha. Não quero meu dia de ano novo igual a nenhum outro - nem igual aos meus cinco anos, com a mesa cheia de doces, a casa cheia de gente e eu vestida de branco com um chapéu super charmoso. Quero dias diferentes, de cores diferentes, outro tom no céu como cenário do meu happy day.


Quero desaniversários! Quero inventar meus renascimentos, criar meus ciclos que forem necessários, sem me repetir. Quero desfazer as idades que já tive para aprender esta que estreia agora. Aprender a ser, e desaprender, e aprender outra vez, de um outro lugar, com outro olhar, outro coração. Desaniversario-me hoje e sempre. Desfaço-me dos trinta e um. Começo a viver hoje, aos trinta e dois. E não peço presentes. Só quero estar inteira, completa, eu-presente aqui e agora, ao lado de quem preciso estar. Novos caminhos, trinta e duas outras possibilidades de ser e viver. E a festa que acontece agora é dentro de mim, só eu posso desfrutá-la. Por fora, silêncio, silencio... desaniversario. 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Projeto de pós-doutorado


Banho de cachoeira, tatuagem, cinema duas da tarde, namorado novo, amor leve, amor bonito
Vestido de flor, casa enfeitada, cheiro de jasmim, bicicleta, patins, praia com lua cheia
Olhos sem lentes, telefones, gafieira, forró, par de dança
Pés na areia, pés na água, pés na grama, pés na cama, pés descalços
Música alta, livro sem hora, sono sem pressa
Sorvete
Viagem
Pessoas
Arte
Sol
Sorrisos.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Afetos

Hoje eu fiz o que já há algum tempo não fazia: andar sozinha pela noite do Rio de Janeiro. Depois de uma conversa sobre papa, protestos, bombas e afins, o medo da violência noturna quase me impediu de uma breve caminhada até casa. Guardei o medo no bolso e fui. Afinal, nem era tão tarde e ainda não me conformo em não poder caminhar tranquilamente em uma das ruas mais movimentadas de um dos bairros mais movimentados de uma das cidades mais badaladas nos últimos tempos. Não é, Rio de Janeiro maravilhoso?!?
E lá fui eu, atenta a tudo que pudesse acontecer naquela hora. Contra o medo, inventei uma brincadeira de não ver coisas ruins (sim, às vezes eu crio brincadeiras para distrair minha mente tão faladeira). Esses joguinhos mentais que criamos para nos despistar quando precisamos esquecer algumas coisas... E funcionou!
No primeiro quarteirão, três crianças na rua. Três meninos. O primeiro dormia, rosto jogado no colchão sujo e cheio de coisas. O segundo lia. Tinha em suas mãos um livro qualquer e isso, confesso, pingou em mim um pouco de alegria – ele lia! Um desses livros que jogamos fora todos os dias, palavras que não nos servem mais e agora acalentavam a noite daquele menino que ia dormir na rua. O terceiro, ah! esse, deitado entre os outros dois, me mandou um beijo!!! Assim, bem estalado, beijo bem jogado. Quase ri. Fiquei olhando aqueles meninos, sem muita expressão, mas um tanto fascinada com o afeto que a rua me dava, eu que antes tinha medo. Pensei no beijo de um filho para uma mãe que já não existe, o beijo para uma mãe que não tem filhos, um beijo jogado de baixo para cima, por alguém que vai passar a noite no chão de uma calçada em Copacabana. (E quanta gente vai dormir em cama sem ter mandado nem um beijo esta noite...) E segui, perdida na lembrança dos meninos entre beijos e livros. E para quem bem me conhece, sabe que isso basta para que me perca: livros e beijos. E estes meninos vão dormir na rua...
Dois quarteirões adiante e mais afeto (e há quem pense que não há amor nas noites de Copacabana): outros dois moradores de rua. Agora um casal, jogado em um improviso de colchão na imundície de um canto de calçada, dormia. Passei devagar e outra vez me encanto: ela estava deitada completamente aconchegada sobre o braço do companheiro, que parecia acolher aquele corpo sujo e maltrapilho com todo o carinho que pode haver entre duas almas que se acompanham. Nem senti pena. Senti outra vez uma alegria, um alívio quase, vendo aqueles dois ali, juntinhos na pobreza, na miséria, na doença, na rua, ao contrário das pessoas que prometem nos casamentos diante das batinas longas dos padres, mas se esquecem tão logo a saúde ou o dinheiro acaba. “Que bonitinho”, pensei com os botões da minha longa saia vermelha. E segui tranquila, sem medo.
Agora que cheguei em casa segura, beijada, preparei minha cama quentinha e acolhedora, não há como não pensar nos meninos que vi na rua, no beijo, no livro e no abraço daquele casal. Poderia lamentar tanta injustiça. Poderia clamar por mais igualdade. Poderia questionar se o Papa verá essas pessoas todas dormindo ao relento. Mas hoje não. Fico somente com os assaltos de afeto que a noite me proporcionou, com as pequeninas belezas que encontrei entre tanta sujeira, pobreza e tristeza. Poderia ficar com a dor e o sofrimento dos outros. Mas prefiro o livro, o beijo e o abraço. Hoje vou dormir com essa.

sábado, 22 de junho de 2013

Como dormir em tempos de revolução


A lua se enche em frente a nossa varanda. Parece cheia. Cheia de vontade, cheia de anseios, cheia de expectativas. Não está cheia de medo, isso ela não conhece. Sai toda noite, nua e sozinha pela escuridão afora. E ainda brilha. E ninguém lhe toca.
Há coisas estranhas lá fora.
Uma rua vazia.
Um barulho enorme dentro das telas dos computadores.
Uma falação sem fim de gente apreensiva, com raiva, com medo, com esperança.
Alguma coisa está mudando e pelo sacudir das cadeiras, parece que treme o centro da Terra. Mas não. É só uma multidão saindo de casa.
É só uma multidão gritando enlouquecida e emocionada, saindo da solidão da desesperança.
Encontramos a nós mesmos. Reconhecemos que temos planos, sonhos e frustrações em comum. E como é bom não estar no barco sozinho! Vejo que agora que descobrimos que estamos todos no mesmo barco, e em alto mar, não dá mais para parar de remar.
O inverno entrou calado.
Nem ousou esfriar nossa pele de guerra.
O medo anda assustando, tentando se espalhar pelo ar com fumaça de bombas desvairadas.
Mas essa gente canta. Essa gente ginga e não pense que gingado é brincadeira. É sabedoria.
Tudo se move, dentro e fora, e é impossível dormir em paz.
Nem o canto de ninar da mãe.
Nem o chá. Nem o calmante.
Nessas terras não se dorme.
Nessas terras ninguém está bem.
Só a lua permanece serena, bonita, encantada.
Fica ali, olhando com seu olho infinito os olhos despertos dos que não dormem, mas sonham.
E que cantiga há de embalar o sono para voltarmos a dormir?
Quais sonhos levaremos para o dia de amanhã?
Eu não durmo.
Tu não dormes.
Eles dormiam.
Nós nos acordamos.
Nós os acordamos.
Vós vos acordai.

Ó, Lua, olhai por nós!