sexta-feira, 15 de outubro de 2010

No dia dos professores

Este texto foi publicado já há alguns anos, num mês de outubro, em homenagem às crianças e aos professores. Resolvi retomá-lo aqui, pois ainda traduz algo dos meus pensamentos sobre essas duas figuras que tanta mudança causam em nossas vidas. E aproveito o dia para parabenizar e mandar as vibrações de força e coragem para meus colegas de trabalho, esses guerreiros da educação brasileira bastante ingrata! Feliz dia dos professores!!!


Sobre crianças e mestres

Se você me ensinar, eu posso viver com a calma que quiser, ouvindo tudo o que tem a me dizer e parando meu dia para brincar. Posso contar histórias de navios, piratas e crianças que voam pela janela durante a madrugada, antes de você dormir. Posso inventar um castelo debaixo da cortina da sala e lutar contra os dragões que invadiram a cozinha ontem à noite. E só você viu.

Se me ajudar eu vou esquecer todas as tristezas que me aconteceram só para assistir desenho, comendo pipoca e rolando no chão. Vou me esconder dentro do guarda- roupas, se me couber, se é isso que você pede. Vou pintar o nariz de vermelho e mostrar a língua na janela, só pra cair na risada depois. Mas você tem que me ajudar.

Também tem que me ensinar a não falar coisa com coisa, assim como você faz. Usar as palavras sem uma lógica, mas com tanta vontade que acredita estar realmente dizendo alguma coisa. Quero que me ensine a lamber a raspa da panela sujando todos os dedos da mão, lambuzando a cara, a roupa e se olhando no espelho para ver como está engraçado. Quero que me ensine a fazer graça também.

Se você me ensinar, posso viver com a leveza e tranqüilidade que você tem quando dorme. Só há um problema: eu já não tenho a sua idade. Por isso vai ser difícil aprender. Difícil, porque há muito me esqueci da graça que criança vê em tudo; perdi a imaginação mais do que fértil; agora eu tenho senso de ridículo, um calo que só serve pra atrapalhar a vida da gente que é grande; eu tenho uma imagem, um nome, uma posição social, você nem sabe o que é isso. Pois é, mas eu sei e eles, tá vendo os espiões ali? Pois é, eles também sabem. E estão me vigiando. É que eu agora tenho que trabalhar, sair de casa todos os dias e voltar cansado, pra receber num mês o que aqueles espiões ali gastam em um dia. Eu tenho que ser sério, porque me disseram que não se pode rir à toa; tenho que falar baixo, porque disseram que gritar é falta de educação; eu tenho dor nas costas porque me obrigaram a ficar sentado por muito tempo em frente a um computador; eu tenho responsabilidades, porque me chamam cidadão; eu tenho compromissos, porque me deram as chaves de uma casa, de um carro e uma vida de adulto sem ao menos perguntarem se eu queria. Não me deram tempo de pensar. Agora é tarde. Então eu quero que me ensine a ser feliz de novo. Como você.

E assim, espero que mais tarde você encontre alguém que lhe ensine as coisas do mundo sem fazer esquecer de tudo que me ensinou. Um professor que lhe ensine, não ficar sentado olhando para a frente, mas a correr e pular pelos muros da vida, olhando para todos os lados, não deixando nada escapar; um professor que não mande calar a boca, mas que mostre os momentos certos de expor sua opinião; que não fique preso aos livros (nada) didáticos com suas fotos e textos ultrapassados, mas que leve o dia-a-dia para a sala, para ser discutido, criticado, aprendido; que não cobre nas provas as frases decoradas, mas sua capacidade de articular suas próprias idéias. Espero que encontre um professor que deixe você usar toda sua criatividade, que o deixe criar, que use a arte para ilustrar as idas e vindas da história, que não se prenda a números e notas, porque você não é um número. Não se permita ser. Espero que encontre alguém que ensine a usar a espontaneidade ao invés de reprimi-la e principalmente, alguém que acredite na sua capacidade de ser melhor.

Então você crescerá sem pressa, vivendo tudo no tempo certo, sabendo que há alguém a quem possa perguntar “por que”, não temendo a falta de resposta, pois se não lhe explicarem as razões, você mesmo saberá inventá-las, como fazia com as histórias de dragões. Terá mais coragem pra enfrentar os medos, já que pulou tantos e tão altos muros, que não verá nada que possa atrapalhar seu caminho. Saberá usar todos os ensinamentos de acordo com cada situação, sem se prender a fórmulas e respostas prontas. Espero que tenha um verdadeiro mestre, que não lhe diga o que fazer, mas que mostre como achar a solução, como procurá-la. Um mestre capaz de dizer o quão difícil é a vida sem lhe tirar o prazer de vivê-la. Um mestre que seja capaz de aprender com cada pessoa, e que aprenda com as crianças o desejo eterno de conhecer.

Em um país distante, lá pelos lados do Oriente, as crianças quando iam para a escola pela primeira vez recebiam como presente de boas vindas um pedaço de chocolate meio amargo. Muito mais que um agrado aos pequenos feito por seus futuros mestres, o presente simbolizava como seria o processo de aprendizado, que é semelhante à vida: doce, mas nem tanto...

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Primavera

Eu me mudei. Saí levando tudo que podia, deixando muito mais coisa que um dia imaginei deixar. Cobri os móveis, tranquei a porta. Penso nunca mais voltar. Andei e atravessei a rua comprida, cruzei o sinal e vi a avenida central, sinuosa e traiçoeira, me chamando sem ver o fim. Andei e continuo andando. Acabo de jogar as chaves fora. Rasguei o papel com o endereço. Agora penso em deixar essa bolsa por aqui. Ela tem os meus documentos, meus números e minhas imagens registradas em 3 por 4. Coloco a bolsa no chão, abro o e pego um espelho. Deixo o resto e sigo adiante. Olho pelo pequeno vidro e confiro se as lentes estão no lugar. Melhor tirá-las também. Melhor agora é nem enxergar a nitidez do que não o é. Melhor assim, meio embaçado, com cara de sonho em filme de ficção. Jogo o espelho com força e ele se quebra em milhares de pedacinhos que nem ouso contar. Um, dois, três e saio correndo de mim. Explodindo, minha alma se levanta de solavanco, como se um susto a acordasse de repente, assim como a gente acorda atrasado porque não ouviu o despertador. Corro, corro, corro, pra bem longe de tudo que me prendia. Corro mais um pouco e respiro ofegante, sem saber bem onde estou. E é por aqui que devo ficar um pouco, até a chuva parar, até o sol diminuir, até o vento voltar. Vou ficando, ficando, deixando crescer novas raízes e esperando o tempo das novas flores. Nova primavera ao meu redor e novidades no centro de tudo. Não sei onde estou, não sei como cheguei aqui, não sei o caminho de volta, não sei quem está ao meu lado; mas fecho os olhos e me sinto bem. Então fico, até quando precisar correr de novo.