quarta-feira, 31 de julho de 2013

Afetos

Hoje eu fiz o que já há algum tempo não fazia: andar sozinha pela noite do Rio de Janeiro. Depois de uma conversa sobre papa, protestos, bombas e afins, o medo da violência noturna quase me impediu de uma breve caminhada até casa. Guardei o medo no bolso e fui. Afinal, nem era tão tarde e ainda não me conformo em não poder caminhar tranquilamente em uma das ruas mais movimentadas de um dos bairros mais movimentados de uma das cidades mais badaladas nos últimos tempos. Não é, Rio de Janeiro maravilhoso?!?
E lá fui eu, atenta a tudo que pudesse acontecer naquela hora. Contra o medo, inventei uma brincadeira de não ver coisas ruins (sim, às vezes eu crio brincadeiras para distrair minha mente tão faladeira). Esses joguinhos mentais que criamos para nos despistar quando precisamos esquecer algumas coisas... E funcionou!
No primeiro quarteirão, três crianças na rua. Três meninos. O primeiro dormia, rosto jogado no colchão sujo e cheio de coisas. O segundo lia. Tinha em suas mãos um livro qualquer e isso, confesso, pingou em mim um pouco de alegria – ele lia! Um desses livros que jogamos fora todos os dias, palavras que não nos servem mais e agora acalentavam a noite daquele menino que ia dormir na rua. O terceiro, ah! esse, deitado entre os outros dois, me mandou um beijo!!! Assim, bem estalado, beijo bem jogado. Quase ri. Fiquei olhando aqueles meninos, sem muita expressão, mas um tanto fascinada com o afeto que a rua me dava, eu que antes tinha medo. Pensei no beijo de um filho para uma mãe que já não existe, o beijo para uma mãe que não tem filhos, um beijo jogado de baixo para cima, por alguém que vai passar a noite no chão de uma calçada em Copacabana. (E quanta gente vai dormir em cama sem ter mandado nem um beijo esta noite...) E segui, perdida na lembrança dos meninos entre beijos e livros. E para quem bem me conhece, sabe que isso basta para que me perca: livros e beijos. E estes meninos vão dormir na rua...
Dois quarteirões adiante e mais afeto (e há quem pense que não há amor nas noites de Copacabana): outros dois moradores de rua. Agora um casal, jogado em um improviso de colchão na imundície de um canto de calçada, dormia. Passei devagar e outra vez me encanto: ela estava deitada completamente aconchegada sobre o braço do companheiro, que parecia acolher aquele corpo sujo e maltrapilho com todo o carinho que pode haver entre duas almas que se acompanham. Nem senti pena. Senti outra vez uma alegria, um alívio quase, vendo aqueles dois ali, juntinhos na pobreza, na miséria, na doença, na rua, ao contrário das pessoas que prometem nos casamentos diante das batinas longas dos padres, mas se esquecem tão logo a saúde ou o dinheiro acaba. “Que bonitinho”, pensei com os botões da minha longa saia vermelha. E segui tranquila, sem medo.
Agora que cheguei em casa segura, beijada, preparei minha cama quentinha e acolhedora, não há como não pensar nos meninos que vi na rua, no beijo, no livro e no abraço daquele casal. Poderia lamentar tanta injustiça. Poderia clamar por mais igualdade. Poderia questionar se o Papa verá essas pessoas todas dormindo ao relento. Mas hoje não. Fico somente com os assaltos de afeto que a noite me proporcionou, com as pequeninas belezas que encontrei entre tanta sujeira, pobreza e tristeza. Poderia ficar com a dor e o sofrimento dos outros. Mas prefiro o livro, o beijo e o abraço. Hoje vou dormir com essa.