segunda-feira, 24 de maio de 2010

A imagem turva

Lembro-me que tinha os olhos pequenos, amendoados, a face meio fina e um queixo delgado. Lembro-me levemente de uns traços da boca. Esqueço, aos poucos. Foge à memória, quando tento ver-lhe a cor dos olhos e o tom da pele. Escapa de meus pensamentos a forma dos dedos e o arco da nuca. A foto ao lado às vezes me lembra de algo que se perde, mas ela já não fala mais de como é seu rosto, não me conta mais desse sorriso. A imagem presa ao passado conta de um tempo que não há mais. Histórias, para contar ou não, para lembrar ou não, para deixar passar, para transformar em contos, filmes e nada mais.

De vez em quando, sem que eu perceba, a imagem surge clara e lúcida, num piscar de olhos. Às vezes em sonho, ou quando a ressaca da tristeza se esconde por uns segundos. Vem aquele relâmpago de lembrança, jogando nas pupilas de dentro a certeza daquele olhar. Vem e passa, tão rápido quanto a luz. E volto a me esquecer, a perder entre outras visões de letras, borboletas e pôr-do-sol, a face de quem está sempre presente. A lucidez se enevoa, a luz diminui tirando o foco do sorriso, do brilho do olhar.

A imagem, cada vez mais turva, diz que algo se perdeu. A saudade vira lembrança, guardada no fundo para ser contemplada um dia, quem sabe, quando já não houver mais dor, nem tristeza, nem rancor. Só uma imagem turva, uma sombra sem formas, sem cor, sem sentido. Um borrão de tinta, uma marca. E como nem todas as marcas se apagam, ficam assim, essa mancha amorfa cujos contornos não conseguimos mais distinguir. Mas é esse o sentido das marcas – contar algo de nós, lembrar que algo tão nosso, mesmo que perdido no espaço e no tempo, permanece em algum lugar.

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