terça-feira, 12 de outubro de 2010

Primavera

Eu me mudei. Saí levando tudo que podia, deixando muito mais coisa que um dia imaginei deixar. Cobri os móveis, tranquei a porta. Penso nunca mais voltar. Andei e atravessei a rua comprida, cruzei o sinal e vi a avenida central, sinuosa e traiçoeira, me chamando sem ver o fim. Andei e continuo andando. Acabo de jogar as chaves fora. Rasguei o papel com o endereço. Agora penso em deixar essa bolsa por aqui. Ela tem os meus documentos, meus números e minhas imagens registradas em 3 por 4. Coloco a bolsa no chão, abro o e pego um espelho. Deixo o resto e sigo adiante. Olho pelo pequeno vidro e confiro se as lentes estão no lugar. Melhor tirá-las também. Melhor agora é nem enxergar a nitidez do que não o é. Melhor assim, meio embaçado, com cara de sonho em filme de ficção. Jogo o espelho com força e ele se quebra em milhares de pedacinhos que nem ouso contar. Um, dois, três e saio correndo de mim. Explodindo, minha alma se levanta de solavanco, como se um susto a acordasse de repente, assim como a gente acorda atrasado porque não ouviu o despertador. Corro, corro, corro, pra bem longe de tudo que me prendia. Corro mais um pouco e respiro ofegante, sem saber bem onde estou. E é por aqui que devo ficar um pouco, até a chuva parar, até o sol diminuir, até o vento voltar. Vou ficando, ficando, deixando crescer novas raízes e esperando o tempo das novas flores. Nova primavera ao meu redor e novidades no centro de tudo. Não sei onde estou, não sei como cheguei aqui, não sei o caminho de volta, não sei quem está ao meu lado; mas fecho os olhos e me sinto bem. Então fico, até quando precisar correr de novo.

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