sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Homem Livre

Outro publicado nO Paroquiano, em setembro de 2008.


No dia 08/08/08 um homem saiu de sua cidade natal sobre uma bicicleta em busca de um sonho. Na mesma manhã, Clarinha e André estavam fechados na sala branca, sobre um enorme colchão branco amarelado, isolados das outras crianças. A catapora distancia as pessoas. E durante a semana, enquanto pedalava por uma estrada qualquer, de um país sem nome, onde pessoas sem identidade olhavam seus rostos sem traço algum em espelhos que se quebravam com vento, o homem pensou que era livre.

Na semana anterior Clarinha pulou do meu colo e sentou-se na janela. Uma janela grande, cercada por uma tela cinza e fria, que impedia os pássaros de chegarem mais perto da menina sem mãe. Clarinha viu a árvore, o pedaço de céu azul entre os edifícios, o verde do jardim à frente da casa de outra menina. Ela pediu pra ficar ali mais um pouco, e um pouquinho mais. Ela gosta muito de janelas. Só que nessa semana Clarinha não pulou no meu colo, nem viu a janela, nem sequer viu o céu azul estalado, lindo de um sol deslumbrante, que fazia derreter nossos sonhos em gotas de suor amargo. As pequenas manchas em seu rosto não apagaram a beleza de seu sorriso infantil, sua delicadeza de menina pedindo pra ser flor e ser regada e bem cuidada por toda uma estação. Mas o olhar era o mesmo que atravessava a tela, um olhar de quem pede para ser borboleta, formiga ou qualquer coisa que vivesse longe dali. Talvez Clarinha sonhe em ter uma bicicleta e sair por aí, e nem precisava ir tão longe. O outro lado da rua para ela já seria uma grande conquista. O mundo inteiro nem é preciso para as crianças que vivem como Clara. Para ela, bastavam uma mão e um lugar.

Durante 3 anos, o homem seguirá, sozinho, com sua casa nas costas, à procura daquilo que somente ele sabe onde encontrar. Talvez a liberdade que tanto procura e adora esteja dentro da própria alma, pulsando na própria veia, mas ele precisa atravessar oceanos, fronteiras e culturas para descobri-la ali. Talvez não encontre e continue a vagar por estradas sem fim, até que seu tesouro apareça como nas histórias em quadrinhos, brilhando debaixo de um arco-íris distante ou perdido num pote marrom. Ou, quem sabe, ele nem queira encontrar nada e esteja apenas se livrando do peso que o mundo nos joga quando temos uma carteira de identidade e uma conta no banco, quando esperamos aflitos pelo ônibus que não chega, ou corremos para levar os resultados de um exame que pode mudar nosso futuro.

Como deve ser bom poder fugir daquilo que escraviza e oprime. E ter tamanha coragem é privilégio dos heróis. Somente os heróis fogem. Sim, fogem. Também combatem e enfrentam dragões, mas são espertos o suficiente para sair na hora certa, quando se esgotam as forças ou quando o inimigo é poderoso demais. Ser herói é ser quase mais que humano, é fazer aquilo que poucos são capazes, é ter mais coragem, mais ousadia e um tanto de dom. Mas sabemos que nem todo herói é guerreiro, principalmente nas histórias de ficção. Ao guerreiro cabe a luta, ir à guerra, abrir o peito para que o herói não morra. O guerreiro não se entrega e mesmo à beira da morte precisa continuar. É o papel que lhe cabe.

Clarinha não pode fugir. Precisa esperar, sabe Deus por quanto tempo, ela vai esperar. A menina não pode pôr os pés na estrada e seguir em busca dos próprios sonhos antes que alguém lhe abra as portas daquele casarão enorme de corredores frios que ela chama de casa. Talvez pudesse acompanhar o homem, este que hoje não possui cor, nem cara, que se uniu ao vento e à chuva e carrega no peito somente uma placa escrita ‘ser humano’, este que está rompendo conceitos e atravessando guerras, este que se fez um herói. Mas ela não é uma heroína na nossa história e tampouco quer caminhar sozinha. Clara é uma das guerreiras e a ela cabe o papel de combater. A luta, dia após dia, contra a solidão das noites sem abraços, sem pai nem mãe nem irmão nem qualquer coisa que ela chame de família, a luta nos domingos sem visitas e sem doces, a luta por um colo que a leve à janela... Clarinha é guerreira. E enquanto nosso herói nos inspira buscando a Liberdade mundo afora, a menina de olhos tristes e coração sedento espera por ela. Só pode esperar. E a cada minuto que passa ela se distancia da pequena flor abandonada num orfanato qualquer. Se existe mesmo a Liberdade, que ela venha para Clarinha. Mas que venha logo, antes que o homem a encontre.


Em tempo: Danilo Perroti, o Homem Livre, chega de sua volta ao mundo sobre uma bicicleta no dia 11/11/11, às 11:11, em Belo Horizonte, na Praça da Liberdade. Quem puder, vá ver. http://www.homemlivre.com.br/home.php?idioma=1

Clara já não estava mais no orfanato na última vez que o visitei. Sua mãe voltou para buscá-la, junto de seu pequeno irmão. Voltaram para casa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A Flauta Mágica


Depois de uma longa ausência e, surpresa com os pedidos de novidades, retorno com mais um texto antigo publicado no jornal O Paroquiano (Fábio, obrigada pelo pedido e pelo carinho!). Maira, espero que goste.


A Flauta Mágica

O homem dos olhos cor de mel vive entre os bancos da praça do metrô e a marquise da lojinha de roupas ao lado da farmácia. Em seu terno velho e sujo, passa o dia sentado ao lado de alguns sapatos velhos e outras coisas. À noite fica na calçada, olhando desconfiado para as pessoas que passam. Há algum tempo que o conheço. Posso dizer que já faz parte da minha vida. Não tem nome, nunca ouvi sua voz, mas já me olhou nos olhos várias vezes. Acho que não me reconhece, talvez nem perceba que somos vizinhos. Dele eu não sei nada, nem tampouco ele sabe de mim. Mas convivemos bem assim, no silêncio dos olhares entre o preto e o mel.

Um dia ele apareceu de banho tomado, cabelo raspado. Era fim de ano e alguém deve tê-lo levado pra casa. Talvez algum familiar saudoso, um amigo ou até mesmo um voluntário de uma ONG. Deram- lhe roupas novas, um pouco mais informais. Ele abandonou o paletó velho e agora usava camisa de malha. Parecia mais jovem e mais bonito. Não mais feliz.

Um dia encontrou entre a grama suja e o cinza do chão uma flauta. Poderiam ter-lhe oferecido como doação (as pessoas e suas manias de dar coisas velhas para os pobres!), mas acredito que ele a tenha encontrado. Pegou-a com cuidado e limpou bastante. Guardou dentro do bolso da calça e passou o dia pensando no que fazer com aquilo. Pensava? Passaram-se semanas. Todos os dias, ao acordar, olhava a flauta. Antes de dormir, a limpava. Seus olhos cor de mel fitavam o instrumento com um misto de adoração e medo. De onde viria aquilo? E por que ele a encontrara? Um mês depois decidiu colocá-la na boca pela primeira vez. Como um menino que descobre a delícia de um sorvete, descobriu que poderia fazer barulho. E foi perdendo o medo. A cada dia, um minuto a mais de sons desarranjados e sem sentido.

Certa vez, depois que já estava à vontade fazendo seu som, algo diferente aconteceu. Enquanto tocava, passaram pela mente daquele homem algumas lembranças. Enquanto a flauta fazia barulho, momentos de quando era jovem surgiam como um sonho e desapareciam quando a flauta cessava. Via os rostos dos parentes perdidos, ouvia as vozes das mulheres que conheceu, lembrava das músicas de que mais gostou. Tudo, tudo o que havia se perdido no poço frio do esquecimento, tudo que a loucura e o desamparo levaram para longe do ser. Ao se dar conta do poder da flauta, começou a tocá-la mais vezes ao dia. Como uma droga, usava-a para sair do silêncio e da tristeza que lhe dominavam. Espantava os passantes com a melodia errante que invadia o sol de meio-dia da cidade turbulenta e quente. Os carros corriam à sua frente e o homem apenas tocava sua flauta. Fugia do mundo. Encontrava sua história.

Assim foi que o mendigo transformou-se no flautista da calçada. Passou a tocar quase o dia todo. Não queria parar nem para comer. O instrumento tornou-se seu amuleto, seu anjo da guarda, seu cachorro de estimação. Tinha o poder de levá-lo de volta à sua vida, perdida entre tantas outras. Ela lhe falava de sua identidade, do cidadão que havia se esquecido de ser. Ela lhe mostrava sua infância, o passado com os pais numa cidade pequena, o trabalho outrora perdido, a doença que aos poucos foi lhe transformando num marginal. Descobriu que não era um homem mau e que não sabia onde estava. Descobriu também que um dia foi amado e que ainda procuravam por ele. Pelos minutos em que tentava fazer música na pequena flauta, encontrava a si mesmo. Quem poderia imaginar que o pedaço de madeira teria poderes mágicos? E se então podia lembrar, por que tudo se apagava novamente quando o barulho acabava? A felicidade de lembrar de tudo durava pouco tempo, e logo que parava, os olhos cor de mel do homem do banco do metrô voltavam a se perder no infinito. Onde será que estava aquela mente depois do surto de memória? Para onde fugiram seus pensamentos? Onde a flauta buscava suas recordações?

A mim e ao outros passantes, nada mais que um mendigo tocando uma flautinha. Mas era um ser humano que agia em busca de si, do sentido de estar ali. Tocava, na esperança de um dia poder guardar todas as lembranças e poder sair do lugar onde a sociedade o lançara. Queria saber o que estava acontecendo. Mas a flauta tinha o poder limitado. Assim como a lâmpada, que só concede 3 desejos; assim como o encanto da Cinderela, que terminou à meia-noite. Nada além de alguns minutos e alguns pensamentos. A flauta não daria mais que isso. E o meu vizinho, aquele homem dos olhos cor de mel, continuará sentado debaixo da marquise toda noite, olhando as pessoas que passam acima dele, com medo de olhar, com medo de que lhe peça alguma coisa. Mas não, ele não pede nada, ele é um homem bom. Apenas toca sua flauta e pede a ela, no silêncio do seu coração, que as lembranças fiquem. E a flauta pede a Deus, com sua canção, que a vida do homem se transforme num conto de fadas. Pois só assim ele poderia ser salvo e ser feliz para sempre.