No dia 08/08/08 um homem saiu de sua cidade natal sobre uma bicicleta em busca de um sonho. Na mesma manhã, Clarinha e André estavam fechados na sala branca, sobre um enorme colchão branco amarelado, isolados das outras crianças. A catapora distancia as pessoas. E durante a semana, enquanto pedalava por uma estrada qualquer, de um país sem nome, onde pessoas sem identidade olhavam seus rostos sem traço algum em espelhos que se quebravam com vento, o homem pensou que era livre.
Na semana anterior Clarinha pulou do meu colo e sentou-se na janela. Uma janela grande, cercada por uma tela cinza e fria, que impedia os pássaros de chegarem mais perto da menina sem mãe. Clarinha viu a árvore, o pedaço de céu azul entre os edifícios, o verde do jardim à frente da casa de outra menina. Ela pediu pra ficar ali mais um pouco, e um pouquinho mais. Ela gosta muito de janelas. Só que nessa semana Clarinha não pulou no meu colo, nem viu a janela, nem sequer viu o céu azul estalado, lindo de um sol deslumbrante, que fazia derreter nossos sonhos em gotas de suor amargo. As pequenas manchas em seu rosto não apagaram a beleza de seu sorriso infantil, sua delicadeza de menina pedindo pra ser flor e ser regada e bem cuidada por toda uma estação. Mas o olhar era o mesmo que atravessava a tela, um olhar de quem pede para ser borboleta, formiga ou qualquer coisa que vivesse longe dali. Talvez Clarinha sonhe em ter uma bicicleta e sair por aí, e nem precisava ir tão longe. O outro lado da rua para ela já seria uma grande conquista. O mundo inteiro nem é preciso para as crianças que vivem como Clara. Para ela, bastavam uma mão e um lugar.
Durante 3 anos, o homem seguirá, sozinho, com sua casa nas costas, à procura daquilo que somente ele sabe onde encontrar. Talvez a liberdade que tanto procura e adora esteja dentro da própria alma, pulsando na própria veia, mas ele precisa atravessar oceanos, fronteiras e culturas para descobri-la ali. Talvez não encontre e continue a vagar por estradas sem fim, até que seu tesouro apareça como nas histórias em quadrinhos, brilhando debaixo de um arco-íris distante ou perdido num pote marrom. Ou, quem sabe, ele nem queira encontrar nada e esteja apenas se livrando do peso que o mundo nos joga quando temos uma carteira de identidade e uma conta no banco, quando esperamos aflitos pelo ônibus que não chega, ou corremos para levar os resultados de um exame que pode mudar nosso futuro.
Como deve ser bom poder fugir daquilo que escraviza e oprime. E ter tamanha coragem é privilégio dos heróis. Somente os heróis fogem. Sim, fogem. Também combatem e enfrentam dragões, mas são espertos o suficiente para sair na hora certa, quando se esgotam as forças ou quando o inimigo é poderoso demais. Ser herói é ser quase mais que humano, é fazer aquilo que poucos são capazes, é ter mais coragem, mais ousadia e um tanto de dom. Mas sabemos que nem todo herói é guerreiro, principalmente nas histórias de ficção. Ao guerreiro cabe a luta, ir à guerra, abrir o peito para que o herói não morra. O guerreiro não se entrega e mesmo à beira da morte precisa continuar. É o papel que lhe cabe.
Clarinha não pode fugir. Precisa esperar, sabe Deus por quanto tempo, ela vai esperar. A menina não pode pôr os pés na estrada e seguir em busca dos próprios sonhos antes que alguém lhe abra as portas daquele casarão enorme de corredores frios que ela chama de casa. Talvez pudesse acompanhar o homem, este que hoje não possui cor, nem cara, que se uniu ao vento e à chuva e carrega no peito somente uma placa escrita ‘ser humano’, este que está rompendo conceitos e atravessando guerras, este que se fez um herói. Mas ela não é uma heroína na nossa história e tampouco quer caminhar sozinha. Clara é uma das guerreiras e a ela cabe o papel de combater. A luta, dia após dia, contra a solidão das noites sem abraços, sem pai nem mãe nem irmão nem qualquer coisa que ela chame de família, a luta nos domingos sem visitas e sem doces, a luta por um colo que a leve à janela... Clarinha é guerreira. E enquanto nosso herói nos inspira buscando a Liberdade mundo afora, a menina de olhos tristes e coração sedento espera por ela. Só pode esperar. E a cada minuto que passa ela se distancia da pequena flor abandonada num orfanato qualquer. Se existe mesmo a Liberdade, que ela venha para Clarinha. Mas que venha logo, antes que o homem a encontre.
Em tempo: Danilo Perroti, o Homem Livre, chega de sua volta ao mundo sobre uma bicicleta no dia 11/11/11, às 11:11, em Belo Horizonte, na Praça da Liberdade. Quem puder, vá ver. http://www.homemlivre.com.br/home.php?idioma=1
Clara já não estava mais no orfanato na última vez que o visitei. Sua mãe voltou para buscá-la, junto de seu pequeno irmão. Voltaram para casa.
Adorei os novos posts Mariana.
ResponderExcluirParabéns.
Fábio