Hoje eu fiz o que já há algum tempo
não fazia: andar sozinha pela noite do Rio de Janeiro. Depois de uma conversa
sobre papa, protestos, bombas e afins, o medo da violência noturna quase me
impediu de uma breve caminhada até casa. Guardei o medo no bolso e fui. Afinal,
nem era tão tarde e ainda não me conformo em não poder caminhar tranquilamente
em uma das ruas mais movimentadas de um dos bairros mais movimentados de uma
das cidades mais badaladas nos últimos tempos. Não é, Rio de Janeiro
maravilhoso?!?
E lá fui eu, atenta a tudo que
pudesse acontecer naquela hora. Contra o medo, inventei uma brincadeira de não
ver coisas ruins (sim, às vezes eu crio brincadeiras para distrair minha mente
tão faladeira). Esses joguinhos mentais que criamos para nos despistar quando
precisamos esquecer algumas coisas... E funcionou!
No primeiro quarteirão, três crianças
na rua. Três meninos. O primeiro dormia, rosto jogado no colchão sujo e cheio
de coisas. O segundo lia. Tinha em suas mãos um livro qualquer e isso,
confesso, pingou em mim um pouco de alegria – ele lia! Um desses livros que
jogamos fora todos os dias, palavras que não nos servem mais e agora acalentavam
a noite daquele menino que ia dormir na rua. O terceiro, ah! esse, deitado
entre os outros dois, me mandou um beijo!!! Assim, bem estalado, beijo bem
jogado. Quase ri. Fiquei olhando aqueles meninos, sem muita expressão, mas um
tanto fascinada com o afeto que a rua me dava, eu que antes tinha medo. Pensei
no beijo de um filho para uma mãe que já não existe, o beijo para uma mãe que
não tem filhos, um beijo jogado de baixo para cima, por alguém que vai passar a
noite no chão de uma calçada em Copacabana. (E quanta gente vai dormir em cama
sem ter mandado nem um beijo esta noite...) E segui, perdida na lembrança dos
meninos entre beijos e livros. E para quem bem me conhece, sabe que isso basta
para que me perca: livros e beijos. E estes meninos vão dormir na rua...
Dois quarteirões adiante e mais afeto
(e há quem pense que não há amor nas noites de Copacabana): outros dois
moradores de rua. Agora um casal, jogado em um improviso de colchão na
imundície de um canto de calçada, dormia. Passei devagar e outra vez me
encanto: ela estava deitada completamente aconchegada sobre o braço do
companheiro, que parecia acolher aquele corpo sujo e maltrapilho com todo o
carinho que pode haver entre duas almas que se acompanham. Nem senti pena.
Senti outra vez uma alegria, um alívio quase, vendo aqueles dois ali, juntinhos
na pobreza, na miséria, na doença, na rua, ao contrário das pessoas que prometem
nos casamentos diante das batinas longas dos padres, mas se esquecem tão logo a
saúde ou o dinheiro acaba. “Que bonitinho”, pensei com os botões da minha longa
saia vermelha. E segui tranquila, sem medo.
Agora que cheguei em casa segura, beijada,
preparei minha cama quentinha e acolhedora, não há como não pensar nos meninos
que vi na rua, no beijo, no livro e no abraço daquele casal. Poderia lamentar
tanta injustiça. Poderia clamar por mais igualdade. Poderia questionar se o
Papa verá essas pessoas todas dormindo ao relento. Mas hoje não. Fico somente
com os assaltos de afeto que a noite me proporcionou, com as pequeninas belezas
que encontrei entre tanta sujeira, pobreza e tristeza. Poderia ficar com a dor
e o sofrimento dos outros. Mas prefiro o livro, o beijo e o abraço. Hoje vou
dormir com essa.
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