sábado, 23 de janeiro de 2010

Os sapatos e as portas


Vermelhos. Os meus sapatos. Já um tanto gastos de tanto andar com ou sem rumo pelas mais diversas e tortuosas ruas da cidade quente, fervorosa. São bem baixos, sem salto nenhum, para que não me iluda da distância que estou do chão, nem iluda aos outros com um falso tamanho das minhas nem tão longas pernas. Vermelhos, baixos, mas confesso, já foram mais confortáveis. Hoje não são mais. Contrariando a máxima que afirma que os sapatos velhos são os melhores, por terem a forma dos nossos pés neles tão bem moldada... mas esses, bah!... traíram-me. Cansados de tanto me suportar, hoje machucam meus dedos.

Vermelhas. As portas. Também vermelhas de um vermelho sanguinolento, estúpido, como se fossem as únicas portas vermelhas de todo o mundo. São altas, bonitas, talhadas por mãos negras, certamente, já que são muito, muito velhas. Muito mais que os meus sapatos. São de um tempo longe, longe dos meus olhos e até mesmo da minha imaginação- mesmo que posso sonhar e criar em pensamentos a vida de outrora, jamais viverei e serei capaz de bem absorver o que era aquele tempo que nem sei qual é.

E vendo agora, às minhas costas, as portas e os meus sapatos tilintando em meus ouvidos um passado colorido, vibrante como o rubro que me atordoa, só fico a pensar onde se encostam, além da tonalidade, tais portas e meus humildes pisantes ainda na moda? E me veem à lembrança: caminhos. Sim, é isso! São muitas as estradas por onde tenho andando, umas inimagináveis, outras tão esperadas e programadas como os bebês de proveta. E por muitas portas tenho entrado, por outras, saído; em outras tantas me atenho diante da maçaneta, sem coragem de girar e nem de tocar a campainha. Já em algumas vou passando sem nem ser convidada, assim como se entra na casa da vó ou do melhor amigo, simplesmente entrando. Sem rodeios. Mas essas, confesso, são poucas. Nem mesmo em minha própria casa, que de fato não é minha, mas contém só a mim no momento, nem mesmo nessa me atrevo a entrar de surpresa. Giro a chave devagar, abro sem pressa, entro pé- ante- pé; paro diante do corredor e olho. Ninguém. Silêncio. Cheiro de janela fechada. Ok, posso entrar. Vai ver ainda não me acostumei a ser recebida pela solidão tão acolhedora que me deixa adormecer em seus braços. Talvez seja só mesmo medo de ladrão, lagartixa ou outra bobagem qualquer. Ou ainda, porque não gosto de entrar em casa sem tirar os sapatos. Ahá! Então é isso. Deixo-os sempre, perto da porta, para que lá fique a sujeira da rua, a energia dispersante. Mais ainda, pisar descalça me alivia a alma, além de refrescar do calor suado dos sapatos fechados. E deixo que eles se entendam, em seu vermelho, sobre porque entrei se não deveria entrar.

Nem todos os meus sapatos são vermelhos, como não o são todas as portas. Andarei com eles muito pouco, doravante, ainda que queira usá-los mais. Mas são tantas as portas que ainda tenho a atravessar que, creio, eles não suportarão longo destino. E enquanto me distancio, como sugere Quintana “como quem foge de casa”, troco os pares a cada esquina, para que combinem com os tons das portas que surgem adiante. Não que faça muita diferença – poderia entrar sem sapatos, se assim me permitissem. Mas as cores existem, e os vermelhos se fundem. Não resolve. Mas ajuda. Pelo menos espalho cor pelo meu caminho.

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