Meu jardim é cheio de coisas: flores, folhas, bichos, terra, pedaços de madeira. Tem muitas cores. E muitos olhares. Daqui eu vejo a vida amanhecer azul ou entardecer laranja. Vejo sorrisos amarelos, abraços verdes, carinhos cor de sangue. E vejo a lua. Daqui eu vejo quase tudo, com a lente da cor da flor que eu escolho a cada dia. Aqui, minha vida é mais do jeito que eu quero, leve, bela, pingando amor com o orvalho das frescas manhãs. Como é doce, como é gostosa a vida, olhando daqui.
sexta-feira, 18 de março de 2011
terça-feira, 15 de março de 2011
IRREVERSÍVEL
É irreversível. Depois que se jogam as primeiras palavras no papel, ou na tela que seja, já não há como voltar nem desfazer o feito. Está escrito e pronto, tarde é, impossível desdizer o que foi escrito. E tudo parece assim, meio substantivo, meio adjetivo, quase verbo. Palavra pronta, palavra tonta, palavra toda. Ideia incompleta, mas lançada. Irreversivelmente exposta, assim como estão expostos os ideais que carregam consigo. Como estão expostas as minhas palavras que são partes expostas dos meus desejos que são facetas expostas do meu ego que é raiz escondida do meu ser. Irreversível eu. Falei e pronto. Ponto. Palavra não volta atrás.
domingo, 13 de março de 2011
Mudanças
Eu já passei da fase em que se jogam pedras na beira do rio. Já passei da fase de correr atrás dos pombos para vê-los voando fugindo, assustados. Já passei dessa e de outras. Já não faço mais bolinhas com chiclete e nem dou gargalhada no meio da rua com minha turma de amigos. Eu já não sou mais de sair à noite para encontrar o namorado debaixo de chuva e adorar ficar debaixo das marquises fugindo da água, desculpa para um amasso. Também não sou mais de ler revistas e fazer testes pra saber quem eu sou. Eu já sei quem eu sou. Pelo menos sei o suficiente para não mais fazer certas coisas nem suportar outras tantas que me irritam, ferem ou contrariam. Não preciso mais aceitar tudo que me falam nem tudo que querem me ensinar. Já descobri algumas das grandes verdades que nos escondem quando somos crianças e que insistem em manter longe da grande parcela da população que vê TV aos domingos. Passei também da fase dos almoços em família. Agora meus domingos são só meus, só, e faço deles o que eu quero, quando quero, se é que quero fazer alguma coisa com este domingo.
Já passei, já passei da fase de achar que tudo é bom e todo mundo é legal. Já sei que não é nada disso que a gente imagina e nem por isso me deprimo ou desacredito do mundo. Passei da fase de achar que a culpa é do mundo. Afinal, que culpa? Não acredito mais que haja mesmo culpa por alguma coisa. É só a vida, seus caminhos, suas escolhas. Nossas escolhas.
Já passei da fase de querer tudo do meu jeito. Mas continuo querendo. Só que agora, o “meu jeito” tem um peso muito maior, é feito de forças que não conheço, deuses que nunca vi. Busco o meu jeito onde, até então, não poderia ver. Só agora eu vejo, só agora eu posso, só agora nesta nova fase. Porque já passei, já passei por coisas que me criaram e me deram a forma que tenho nesse instante, essa forma que acabou de se desmanchar e deu lugar a outra, que se desfez agora e veio a outra, que se faz em mim... eu já passei da fase de ter medo do fim.
quinta-feira, 10 de março de 2011
Conto de carnaval
Quando acordou ainda havia um resquício de sereno que a chuva da madrugada deixara no ar. O vento soprava fresco lá fora, ela podia perceber ainda da cama pela fresta da cortina que balançava pesada. Levantou-se lenta, com o corpo mais dolorido que feliz, resultado dos dias passados em pé, caminhando entre a multidão agitada e barulhenta que pulava atrás da felicidade. Ainda era carnaval e isso a deixava meio ansiosa, um pouco por querer que ele acabasse, um pouco por querer desfrutar de tanta energia. No espelho, com o rosto molhado, pensou na fantasia, na maquiagem, no cabelo, na música alegre, nos amigos alvoroçados, no dia anterior. Pensou na infância entre os carros de escola de samba e as roupas das baianas que a vó costurava no quintal, lembrou das primas sambando, o avô com a roupa azul, a Sagrada Família. Ficou com preguiça e tristeza.
Depois de pronta, saiu ainda tímida, tentando fugir dos olhares dos vizinhos e do porteiro que certamente estranhariam a fantasia de borboleta verde que escondia a seriedade da moça tão calada que passava por ali carregando livros e pastas. Quase correu para o portão, fugindo dela mesma. E foi ao pisar na rua que finalmente se entregou ao clima de festa e liberdade que a todos envolvia. Jogou-se no aglomerado humano, sozinha, cantando todas as marchinhas, recitando todas as letras que sabia, sempre sorrindo para as pessoas que passavam. Um homem-bomba tentou abraçá-la e a moça, sorrateiramente, escapou-lhe por debaixo dos braços, rindo feito criança. Outras borboletas se encostaram para tirar fotos e fazer gracinhas; um super-homem de roupas molhadas chamou a atenção pelo tamanho da barriga e do bigode, distraindo-a. Neste momento foi que tudo aconteceu.
Começou um tumulto infernal no centro da praça e foi se espalhando como os círculos que as pedras fazem quando lançadas na água. Um barulho terrível, muita gritaria e gente correndo para todos os lados. A borboleta assustada não sabia para onde ir, nem o que fazer. Estava só, nenhum pássaro maior ou mamífero poderia protegê-la agora, e ela nem poderia voar de verdade. Correu para onde todos iam, sendo empurrada pela massa afoita e escandalosa. Ainda ouvia o som de um frevo tocando na esquina da frente e quis que todos estivessem dançando. De repente o tiro e um último grito. Tudo parou. O frevo se calou. A multidão se calou. A borboleta, já com os olhos borrados de suor e lágrima, parou. Só houve tempo para mais um suspiro quando um senhor vestido de odalisca a puxou pelo braço virando seu rosto lhe disse: Vem, sai daí, menina, não veja isso.
Ela saiu, foi andando pelas ruas do centro, em silêncio, sem esboçar um sorriso, vendo as fantasias jogadas no chão, os bêbados caídos nas calçadas, o lixo, as latas e papéis espalhados, os casais brigando, outros se beijando, serpentinas nos corpos dos travestis e batons manchando os marmanjos barbados. Quando já estava longe pode ouvir ainda o choro sufocado de uma mulher. Tirou as asas e desejou não estar ali nunca mais. Desejou que não houvesse mais carnaval, nem frevos, nem mortes. Desejou que todo mundo fosse os super-heróis, as fadas e os bichos que vestiam naquele dia. Desejou estar abraçada com quem não podia falar. Sangrou a borboleta por toda a terça-feira e só abriu os olhos na quarta-feira. Sentiu uma ponta de alívio. Nenhuma saudade deste carnaval.