quinta-feira, 10 de março de 2011

Conto de carnaval

Quando acordou ainda havia um resquício de sereno que a chuva da madrugada deixara no ar. O vento soprava fresco lá fora, ela podia perceber ainda da cama pela fresta da cortina que balançava pesada. Levantou-se lenta, com o corpo mais dolorido que feliz, resultado dos dias passados em pé, caminhando entre a multidão agitada e barulhenta que pulava atrás da felicidade. Ainda era carnaval e isso a deixava meio ansiosa, um pouco por querer que ele acabasse, um pouco por querer desfrutar de tanta energia. No espelho, com o rosto molhado, pensou na fantasia, na maquiagem, no cabelo, na música alegre, nos amigos alvoroçados, no dia anterior. Pensou na infância entre os carros de escola de samba e as roupas das baianas que a vó costurava no quintal, lembrou das primas sambando, o avô com a roupa azul, a Sagrada Família. Ficou com preguiça e tristeza.

Depois de pronta, saiu ainda tímida, tentando fugir dos olhares dos vizinhos e do porteiro que certamente estranhariam a fantasia de borboleta verde que escondia a seriedade da moça tão calada que passava por ali carregando livros e pastas. Quase correu para o portão, fugindo dela mesma. E foi ao pisar na rua que finalmente se entregou ao clima de festa e liberdade que a todos envolvia. Jogou-se no aglomerado humano, sozinha, cantando todas as marchinhas, recitando todas as letras que sabia, sempre sorrindo para as pessoas que passavam. Um homem-bomba tentou abraçá-la e a moça, sorrateiramente, escapou-lhe por debaixo dos braços, rindo feito criança. Outras borboletas se encostaram para tirar fotos e fazer gracinhas; um super-homem de roupas molhadas chamou a atenção pelo tamanho da barriga e do bigode, distraindo-a. Neste momento foi que tudo aconteceu.

Começou um tumulto infernal no centro da praça e foi se espalhando como os círculos que as pedras fazem quando lançadas na água. Um barulho terrível, muita gritaria e gente correndo para todos os lados. A borboleta assustada não sabia para onde ir, nem o que fazer. Estava só, nenhum pássaro maior ou mamífero poderia protegê-la agora, e ela nem poderia voar de verdade. Correu para onde todos iam, sendo empurrada pela massa afoita e escandalosa. Ainda ouvia o som de um frevo tocando na esquina da frente e quis que todos estivessem dançando. De repente o tiro e um último grito. Tudo parou. O frevo se calou. A multidão se calou. A borboleta, já com os olhos borrados de suor e lágrima, parou. Só houve tempo para mais um suspiro quando um senhor vestido de odalisca a puxou pelo braço virando seu rosto lhe disse: Vem, sai daí, menina, não veja isso.

Ela saiu, foi andando pelas ruas do centro, em silêncio, sem esboçar um sorriso, vendo as fantasias jogadas no chão, os bêbados caídos nas calçadas, o lixo, as latas e papéis espalhados, os casais brigando, outros se beijando, serpentinas nos corpos dos travestis e batons manchando os marmanjos barbados. Quando já estava longe pode ouvir ainda o choro sufocado de uma mulher. Tirou as asas e desejou não estar ali nunca mais. Desejou que não houvesse mais carnaval, nem frevos, nem mortes. Desejou que todo mundo fosse os super-heróis, as fadas e os bichos que vestiam naquele dia. Desejou estar abraçada com quem não podia falar. Sangrou a borboleta por toda a terça-feira e só abriu os olhos na quarta-feira. Sentiu uma ponta de alívio. Nenhuma saudade deste carnaval.

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