Já é carnaval na rua e eu nem
acordei direito. Não enxergo direito. Uma névoa abraça meus olhos e não quero
pensar em acordar. Parece que foi ontem ou anteontem que pedi um pouco mais de
silêncio e minha cabeça ignorou. Fiquei sozinha e quase triste por não saber o
que fazer. Mas mesmo assim saí de casa, saia longa, salto alto, rímel, sem
batom. Saí pra não ficar em mim, calada. Saí pra ver o povo, as calçadas, os
pés andando em pares, quatro pés caminhando lado a lado.
Já é carnaval nos blocos e eu nem
terminei o mantra, a oração, o difícil meditar de cada dia. É tanto barulho e
tamborim que já nem escuto mais o coração, o sangue correr, o piscar dos cílios,
como eu fazia antigamente. Há muito, muito tempo atrás, eu podia sentir o som
do piscar dos meus olhos. Era intenso, quase um transe. Hoje não consigo mais.
Nem sei por quê.
Já tem samba na avenida e eu nem
acabei o texto, nem escrevi uma página, nem respondi aos emails. Tem tanta
coisa aqui dentro de casa que parece que a folia começou em mim, caiu da minha
janela e se espalhou cidade afora. E eu nem pensei no seu sorriso ainda, nem
abracei direito ainda, nem falei do amor que sinto e queria esquecer. Nem
pensei com calma na noite de ontem, nem telefonei para quem devia, nem anotei
na agenda o recado que tenho que te dar. Que queria ficar de olhos fechados, de
perto, até decorar o cheiro do seu pescoço, até aprender a curva da sua orelha,
até fixar a imagem que é tácita demais. Que pensei em esperar acabar a festa
pra poder respirar mais fundo e calar o suspiro na sua boca. Que amanhã me
parece tão longe só porque não é dia de dançar com seus braços segurando meus
ombros, suaves, sem pressa de ser.
Já é carnaval e o dia está
quente, e eu nem troquei de roupa, nem fiz a fantasia, nem cantei a marchinha
do Pierrot. Nem vou fazer nada disso.
Nem vou dançar frevo. Nem vou sambar de biquíni. Nem vou bater tambor. Nem vou.
Prefiro ficar aqui, ouvindo de longe os batuques dos agogôs; prefiro ficar
aqui, desenhando na parede o contorno da saudade, do silêncio e da vontade.
Prefiro dormir mais cedo, acordar mais tarde, tomar suco de fruta e me alongar
feito gato pelo chão frio e limpo. Já é carnaval mas ainda estou devagar, lenta
e lerda querendo me jogar no sofá e ficar com as pernas na parede, cabeça pra
baixo, inventando um outro jeito de ver a vida à minha volta. Ficar assim até
passar a fome, o juízo e o cansaço. Aí então, tomar banho gelado, pintar os olhos
e as unhas de vermelho-paixão, descer escadas e fazer a festa. Nem que seja por
um dia, antes das cinzas, nem que seja na minha rua, pertinho, pra poder voltar
correndo se eu me assustar.
Já é carnaval lá fora e eu ainda
nem descobri você, nem entendi direito, nem te encontrei do jeito que eu gosto.
A multidão tem pressa demais, pois já é carnaval. Eu de cá sem pressa nenhuma.
Devagar, no contratempo, na contradança, esperando o intervalo que existe entre
o seu olhar e o meu beijo. Aguardando o ar que sai da boca e do nariz compassado,
denso. Esperando passar o bloco, a banda e o bando de gente pulando sem quê nem
pra quê. Já é carnaval na rua e eu nem dormi direito.